O Conversa Afiada republica texto de Mauro Santayana, extraído do JB.
Diante de tamanho sensacionalismo com a imagem de Muammar Khadaffi, o autor faz uma crítica e mostra uma visão diversa da que vem sendo amplamente divulgada pela mídia regular.

Chega de sangue

por Mauro Santayana

Diante da imagem de Kadafi trucidado, e dos aplausos de Mrs. Clinton e de dirigentes franceses, ao ver o homem seminu e ensangüentado, recorro a um testemunho indireto de Henri Beyle – o grande Stendhal, autor de Le Rouge e le Noir – de um episódio de seu tempo. Beyle foi oficial de cavalaria e secretariou Napoleão por algum tempo. Em 1816, em Milão, Beyle ficou conhecendo dois viajantes ingleses, o poeta Lord Byron e o jovem deputado whig John Hobhouse. Coube a Hobhouse relatar o encontro, no qual Beyle impressionou a todos os circunstantes, narrando fatos da vida de Napoleão. São vários, mas o que nos interessa ocorreu logo depois da volta do general a Paris, em seguida à derrota em Moscou. Durante uma reunião do Conselho de Estado, da qual Beyle foi o relator, descobriu-se que Talleyrand havia escrito três cartas a Luís de Bourbon, que restauraria, dois anos mais tarde, o trono. As cartas, que se iniciavam com o reconhecimento de vassalagem, no uso do pronome “Sire”, revelavam que o bispo já conspirava contra o Imperador. Os membros do Conselho decidiram que Talleyrand devia ser castigado com rigor – ou seja, condenado à morte. Só um homem, e com a autoridade de “arquichanceler” do Império, Cambacérès, se opôs, com voz firme: Comment? toujours de sang? Napoleão, que estava deprimido com as cenas de seus soldados mortos no campo de batalha, ficou em silêncio.

O sangue que se verteu no século passado devia ter bastado, mas não bastou. Iniciamos este novo milênio com muito sangue e a promessa de novas carnificinas. O cinismo dos que exultam agora com a morte de Kadafi, ao que tudo indica linchado pelos seus inimigos, após a captura, dá engulhos aos homens justos. Os que levaram a ONU a aprovar os bombardeios brutais da OTAN contra a população líbia haviam sido, até pouco tempo antes, parceiros do coronel na exploração de seu petróleo, indiferentes a que houvesse ou não liberdade naquele país. Mas Kadafi não era apenas o ditador megalômano, que vivia no luxo de seus palácios e que promovia festas suntuosas para o jet-set internacional. Ele fizera radical redistribuição de renda em seu país, mediante uma política social exemplar, com a criação de universidades gratuitas, a construção de hospitais modernos e com a assistência à saúde universal e gratuita. Quanto à repressão, ele não foi muito diferente da Arábia Saudita e de outros governos da região, e foi muito menos obscurantista para com as mulheres do que os sauditas.

Apesar das cenas horripilantes de Sirte, que fazem lembrar as de Saddam Hussein aprisionado e, mais tarde, enforcado, além das usuais que chegam da África, há sinais de que os homens começam a sentir nojo de tanto sangue. É alentador, apesar de tudo, que o governo de Israel tenha aceitado acordo com os palestinos, para a troca de prisioneiros. É também alentador que os bascos hajam renunciado à luta armada e preferido o combate político em busca de sua independência. E é bom ver as multidões reunidas, em paz, em todos os paises do mundo, contra os ladrões do sistema financeiro internacional – não obstante a violência, de iniciativa de agentes provocadores, como ocorreu em Roma,e a costumeira brutalidade policial, na Grécia, na Grã Bretanha e nos Estados Unidos.

Há, sem dúvida, os que sentem a volúpia do cheiro de sangue, associado à voracidade do saqueio. A reação atual dos povos provavelmente interrompa essa ânsia predadora dessas elites européias e norte-americanas – exasperadas pela maior crise econômica dos últimos oitenta anos e ávidas de garantir-se o suprimento de energia de que necessitam e a preços aviltados.

É preciso estancar a sangueira. O fato de que sempre tenha havido guerras não significa que devemos aceitá-las entre as nações e entre facções políticas internas. Como mostra a História, o recurso às armas tem sido iniciativa dos mais fortes, e diante dele só cabe a resistência, com todos os sacrifícios.

No fundo das disputas há sempre os grandes interesses econômicos, que se nutrem do trabalho semi-escravo dos povos periféricos, como se nutriram grandes firmas alemãs, ao usar judeus, eslavos e comunistas, como escravos, em aliança com Hitler.

A frase é um lugar comum, mas só o óbvio é portador da razão: os que trabalham e sofrem só querem a paz, para que usufruam da vida com seus amigos, seus vizinhos, suas famílias.

O odor do sangue é semelhante ao odor do dinheiro, e excita os assassinos para que trucidem e se rejubilem com a morte – como se rejubilaram ontem, diante do corpo humilhado de Kadafi, a Secretária de Estado dos Estados Unidos e os arrogantes franceses. Há três dias, em Trípoli, a senhora Clinton disse a estudantes líbios, que esperava que Kadafi fosse logo capturado ou morto. Nem Condoleeza Rice, nem Madeleine Albright seriam capazes de tamanho desprezo pelos direitos de qualquer homem a um julgamento justo. Esse direito lhe foi negado pelas hordas excitadas por Washington e Paris, com a cumplicidade das Nações Unidas – e garantidas pelas armas da OTAN.

Não que Kadafi tenha sido santo: era um homem insano, e tão insano que acreditou, realmente, que os americanos, italianos e franceses, quando o lisonjeavam, estavam sendo sinceros.

Fonte:
Conversa Afiada 

3 comentários sobre “

  1. Ana C Meireles 24/10/2011 / 21:43

    Lembo sobre Kadafi: continuamos uns selvagens

    Quem é selvagem?

    Durante o dia, pensei em como escreveria sobre a exposição mórbida do cadáver de Muammar Khadaffi, que se prolongava há vários dias. Era por demais repugnante, mas mais repugnate é fingir que isso não estava acontecendo, para não ferir a “maré” de júbilo ocidental que, aos poucos, foi se transformando em vergonha mal-disfarçada. Agora à tarde, segundo a Reuters, finalmente, o corpo foi tirado da sala refrigerada onde estava exposto e enterrado num local secreto, se é que isso existe.

    Pode-se até entender a curiosidade mórbida de líbios que o combatiam, embora nada desculpe seus líderes de terem promovido este espetáculo grotesco.

    Mas pior, muito pior é o que fizeram os “civilizados” ocidentais, que sustentaram este desfecho monstruoso, que em nada fica a dever às piores acusações que se faz ao morto, em seus 40 anos de poder. Não me refiro à morbidez da mídia, ao ponto de um jornal inglês ter mandado um repórter à Libia para posar ao lado do corpo já – segundo a própria Reuters – em decomposição. Por respeito aos leitores, reproduzo a foto de capa encobrindo parte da cena com outro recorte do mesmo jornal, este de março, onde o primeiro-ministro de Sua Majestade diz que quer o “Cachorro Louco” vivo ou morto.

    Refiro-me á responsabilidades dos líderes ocidentais. Esta é a civilização que “vão levar” aos árabes? O desfecho só poderia ter sido este, depois de rejeitadas todas as iniciativas de negociação por parte da Otan. Esperavam o que, que os rebeldes enviassem dois “bobbies” ingleses, com seus casacos vermelhos e chapéus de pele para levar Kadhafi sob custódia?

    Finalmente, topei com um artigo do professor Cláudio Lembo, ex-vice-governador de São Paulo, cuja filiação ao DEM o deixa insuspeito de qualquer conotação esquerdista ou anti-ocidental. Reproduzo, porque é escrito não apenas com as lições da História, mas com a alma de um ser humano que, à parte de ideologias, não tem prazer em ver a profanação de cadáveres. E que, lucidamente, não a atribui aos árabes, mas aquilo a que os levamos – das Cruzadas até hoje – em nome dos interesses econômicos e políticos que usam a democracia como o cristianismo foi usado, há muitos séculos, como bandeira de sua hipocrisia.

    Leiam o texto. É muito bom, em meio a isso, ler as palavras de um ser humano civilizado.

    “Morreu Kadafi. Os meios de comunicação ocidentais comemoram. Algumas personalidades internacionais demonstram satisfação. Todos proclamam a importância do fim de mais uma ditadura.

    Restam, no entanto, perguntas não respondidas. A História da Líbia é de conflitos permanentes. Desde a antiguidade, a área geográfica, onde se situa o país, foi invadida por inúmeros povos: fenícios, gregos, romanos, vândalos e bizantinos.

    Em tempos mais recentes, italianos, alemães, ingleses e franceses estiveram ocupando os desertos que se estendem, a partir do Mediterrâneo, no norte da África.

    Beberes e árabes formam a população líbia que, a partir do governo de Mohamede ben Ali – em 1840 – adotou o islamismo como religião, a partir de uma seita que se tornou altamente popular.

    Aqui a primeira pergunta sem resposta. A queda violenta de um governante, ainda que ditador, não gerará um clima de humilhação e revolta em grande parcela da população?

    Esta é muçulmana. Durante os últimos séculos, foram vítimas do colonialismo e do imperialismo que, sem escrúpulos, utilizou as riquezas naturais dos povos dominados.

    Até há pouco, os governantes europeus cortejavam Kadafi e o utilizavam para negócios exuberantes. De repente, o dirigente morto caiu em desgraça.

    Para derrubá-lo, somaram-se as maiores e mais poderosas forças armadas. Estados Unidos aliados à OTAN – Organização do Tratado do Atlântico – bombardearam sem piedade populações civis.

    Quando se realizam operações militares contra alvos indiscriminados restam traços de rancor e desamor nas coletividades agredidas. Até hoje, apesar das aparências em contrário, as populações das cidades alemãs bombardeadas na última Grande Guerra – particularmente Dresden, Frankfurt e Berlim – guardam a dor pela perda de seus antepassados.

    O Ocidente, em sua ânsia de dominação, vai semeando ódio e desencanto por toda a parte onde se encontram presentes os muçulmanos. Ontem, foi o Iraque e o Afeganistão. Hoje, a Líbia.

    Esta macabra escalada precisa conhecer paradeiro. Ser finalizada. Irá tornar a falsa primavera árabe em rigoroso inverno, nas relações entre os povos.

    Os dias de hoje recordam o dramático e brutal episódio das cruzadas. Agrediram populações que as receberam calorosamente. Saquearam. Mataram. Violentaram. Em nome de valores religiosos, praticaram atrocidades inomináveis.

    Repetir a História é tolo. O Ocidente sempre a repete se fundamentado em princípios intrinsecamente valiosos. Fala em democracia. Omite que esta, para ser implantada, exige condicionantes culturais e sociais.

    Na verdade, o que se constata é o interesse econômico nas áreas integrantes da chamada falsamente Primavera Árabe. Está se gerando, na verdade, uma grande reação dos povos que adotam o Islam como religião.

    O futuro demonstrará que, apesar das intervenções econômicas que virão, um substrato de animosidade restará presente. Quem é agredido, mais cedo ou mais tarde revida.

    É lamentável que os países europeus e os Estados Unidos conheçam apenas as armas como diplomacia. Seria oportuno adotarem o diálogo como forma de resolver conflitos.

    Chegou-se ao Século XXI com os mesmos vícios da antiguidade. Não se busca a paz. Deseja-se a guerra. Violam-se princípios. Aplaude-se a morte de pessoas indefesas.

    Não é assim que se educa para a democracia. O devido processo legal e o direito de defesa são sustentáculo de valores perenes. O espetáculo selvagem visto nos últimos dias empobrece a humanidade. Envergonha seus autores.

    A Primavera Árabe transformou-se no inverno dos mais elevados valores concebidos no decorrer do tempo. Continuam selvagens, como sempre.”

    Fonte:
    http://www.conversaafiada.com.br/mundo/2011/10/24/lembo-sobre-kadafi-continuamos-uns-selvagens/

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    • Clara Renault Teixeira da Costa 20/09/2012 / 14:35

      Como estudante de direito, aprendi a pensar nas coisas como deveriam ser (um mundo do dever ser), o que às vezes nos afasta um pouco da parcialidade à flor da pele do mundo da forma como é. Mas certos assuntos nos despertam sentimentos que merecem ser expressos.
      Acredito ser impossível se manter imparcial quando se fala sobre um ditador como foi Muammar Al-kadafi, mas ainda assim acredito que certas atitudes são animalescas, ainda que praticadas contra seres insanos, como a autora se refere ao ex chefe do Estado Líbio.
      Kadafi, nos tempos áureos de seu governo, tornou a Líbia um novo país: erradicou o analfabetismo e elevou significativamente a economia do Estado. Não acredito que isso o torne intocável ou respeitável de qualquer forma após suas práticas cruéis, mas acredito que isso o torne um ser humano e, como tal, merecedor de um julgamento justo e o mais imparcial possível.
      A forma como foi feita a captura do ditador e a reação tão positiva a respeito do assunto, vinda de figuras importantes à política internacional, me causa nada menos que repulsa. Repulsa à atitude tão selvagem e impensada, até mesmo surreal.
      Portanto, deixo clara a minha opinião sobre a morte de Kadafi e a selvageria ao redor dela: foi algo insano, repulsivo e, ao mesmo tempo, revelador, pois nos mostra quão facilmente o ser humano é capaz de se igualar àqueles que mais repele e condena.

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