O Câmara de Eco Social e a Bela Adormecida

Por Carlos Figueiredo

Pintura de Paulo Medeiros
Paulo Medeiros (Pintura)

Em 2001 o norte americano Cass Sunstein, no artigo “Republic.Com”, questionou-se sobre o que sucederia à democracia e à liberdade se usássemos a Internet para apenas interagir com pessoas que pensam como nós. A reflexão serviu de base ao trabalho de Kathleen Hall Jamieson e Joseph N. Cappella, em 2008, que enfatiza o típico comportamento humano no contexto político e cultural: o efeito “câmara de Eco”. Estava criado o conceito que haveria de descrever a relação entre Web, audiência, conformismo e aplanamento cultural.

Laços fortes – Os nossos amigos

A força do laço entre pessoas no âmbito da sua rede social caracteriza-se pelo nível de interação e intimidade entre essas pessoas. A força do laço é tanto maior quanto mais estas pessoas partilham tempo, informação e espaços de frequência (Granovetter, 1973). Neste âmbito incluem-se familiares, amigos próximos ou colegas de trabalho, em que a motivação para interagirem pode derivar de efeitos endógenos, ou seja, homofílicos (pessoas ligadas e organizadas em grupos de proximidade social), que levam à formação de laços, ou à partilha de preferências (exemplo, em relação a interesses culturais, etc.).

Em geral, as pessoas ligadas por “laços fortes” têm uma maior motivação para cooperarem, pelo que estão mais facilmente disponíveis do que as ligadas por “laços fracos” (Granovetter, 1982). As pessoas ligadas por esses laços são mais propensas a se envolverem em maiores esforços emocionais para partilharem conhecimento uns com os outros, mas também para intensificar o fluxo de influências (Bian, 1997) entre esses indivíduos, ou até o aprimoramento da criatividade individual (Staber, 2004; Sosa, 2011), e a produção de conhecimento entre académicos – desde que entre os laços fortes haja conexões com redes esparsas de atores (Mcfadeyn et al., 2009).

Homofilia – A tendência para nos associarmos aos semelhantes a nós

Por seu turno, os nossos atributos endógenos e o facto de seguirmos a tendência de nos associarmos aos que se assemelham a nós pode ser ilustrada pela metáfora social “pássaros da mesma pena voam juntos”, tal como tratado em “Birds of a Feather: Homophily in Social Networks” (McPherson et. al, 2001).

As pessoas (da mesma “pena”) buscam informações de semelhantes ou agrupam-se com estes (i.e., por género, profissão, extrato social, tendências políticas, etc.) motivados por crenças e preconceitos previamente estabelecidos, e, comuns entre si. No fundo, procuramos aqueles que assumimos como semelhantes para que deles obtenhamos aprovação, confirmação e validação das nossas ideias e opiniões. Além de reduzirmos os riscos de uma amizade neste contexto estrutural, também asseguramos níveis de confiança e de solidariedade mais elevados. É o exercício inconsciente de escusa à dissonância cognitiva, pois não gostamos de lidar com crenças contraditórias, ou opiniões conflituantes.

Personas – Aqueles estão na mesma bolha social connosco

Em resultado de tudo isto, surge a correlação entre a estrutura de laços e os atributos dos utilizadores (Mislove et al., 2010), pois pessoas com atributos semelhantes organizam-se em comunidades que partilham e acedem a conteúdos similares. Assim, usando-se determinados atributos de uma fração de utilizadores de uma rede social online, pode-se inferir os atributos dos demais utilizadores. E se a informação circula em circuito fechado no mundo físico, entre os laços fortes, o mesmo sucede nas comunidades online, alimentando-se as semelhanças cognitivas e comportamentais. Os algoritmos inferem personas, ou seja, quem é semelhante a quem com base nos links sociais e padrões de uso e podem agrupá-las para reduzir o número de clusters e de diferenças a computar. E como essa rede de links sociais é mais organizada em torno de utilizadores do que de conteúdo, o volume de informação sobre interesses e hábitos dos utilizadores, para computação, aumentou exponencialmente.

Para o algoritmo, todos nós existimos em comunidades estáveis e previsíveis ao nível de gostos, interesses, preconceitos e pontos de vista, mas também da tipologia de acesso online. Tornamo-nos, pois, facilmente manipuláveis pelo enviesamento da realidade explicitada – e nós ainda achamos que o algoritmo “adivinha” o que queremos… Resultado: apesar da crescente variedade de fontes de informação, perspectivas e conteúdos aparentemente disponíveis online, de facto, não estão acessíveis de forma livre pelas pessoas. Não é possível alcançar o benefício dessa diversidade. As pessoas estão presas dentro da bolha de informação onde o algoritmo as colocou.

Personalização e “Câmara de Eco Social” – A Bela e a capacidade de interpretar

Tudo em nome da dita personalização. No entanto, a diversidade de pontos de vista é fortemente constrangida (Golder & Yardi, 2010), a qualidade do serviço prestado reduzida (saberíamos isso se tivéssemos referências comparativas) e o nível de novidade gerado no acesso à informação é baixo, pelo que o enriquecimento da construção do significado (isto é, a capacidade de interpretar) também é fortemente afectado.

O efeito de “Câmara de Eco” derivado da junção dos conceitos “pássaros da mesma pena” e “confiança”, cujo somatório deu “pessoas semelhantes aumentam a confiança mútua”, agora materializados em dados sociais computados e adicionados à nossa pegada digital ampliaram enormemente aquele efeito podendo agora ser designado por “Câmara de Eco Social” (Figueiredo, 2014).

A conformidade reina na clusterização social mediada por esta forma de algoritmia e os dados sociais foram elevados ao patamar de Santo Graal. E assim, a Bela haveria de ficar ainda mais adormecida ao passar a ver o mundo pelos olhos daqueles que estão no mesmo grupo – todos eles semelhantes, tipo zombies, ligados por laços fortes (ainda que não se conheçam) e a partilharem os mesmos atributos (apesar da sua diversidade espiritual).

Empreendedorismo binário – 01-01

Os empreendedores que criaram estas soluções algorítmicas compreenderam o valor da alimentação da grande Câmara de Eco Social em que acabámos mergulhados. Perceberam que recomendar era importante, fosse para aconselhar itens semelhantes ou relacionados (ex., Amazon, Jornais online, outros), fosse para entregar resultados de pesquisa (ex., Google; Facebook). Depois compreenderam que manter grupos estáveis em bolhas sociais com interesses conhecidos e previsíveis era benéfico para o negócio da venda de publicidade.

Como é sabido isto tem um preço social elevado, mas também um valor económico apetecível. O preço social tem-se mantido escondido, inclusive da comunidade académica que pouco tem debatido as questões do benefício a nível cognitivo da construção do significado por parte do recetor de informação, nomeadamente se a seleção de conteúdo para entrega estivesse limpa de determinações algorítmicas tendenciosas (por enviesamento estatísticos) e livres de relações de consultas não-solicitadas pelos utilizadores.

O valor de fazer diferente é difícil de determinar. Seria possível de fosse mensurável a análise comportamental do todo (a nível social) e das partes (cada indivíduo). Como ainda vivemos mergulhados no universo cartesiano, não confiamos noutra forma de argumentação além das medidas numéricas. Mas fazer isso para analisar a capacidade das pessoas interpretarem a realidade, ou de gerarem pensamento crítico, ou mesmo de questionarem o medium (McLuhan, 1964) que os serve, é muito difícil.

Neste sentido, seria útil poder fazer-se uso da retórica, tal como a ensinada pelos gregos. Era importante persuadir a audiência a mudar o seu comportamento. Mas esta é uma missão cada mais impossível, pois, ao vivermos a era da negligência das disciplinas humanísticas, onde se inclui a exclusão do estudo da retórica e da filosofia, em favor das práticas demagógicas e automáticas, foi semeado um campo fértil para que a sociedade da (des)informação criasse os seus bicos de roca nos quais as Belas se haveriam de picar e adormecer – todos nós -, os colonizadores e nativos digitais. E é assim que nos vamos encontrando num longo e dormente estado de conformismo, social, digital e de cidadania.

E como contornar tudo isto quando o valor económico desta manipulação é tão apetecível? À semelhança do que foi feito com a publicidade baseada em mensagens subliminares – proibida por ser perniciosa na ótica do livre arbítrio do consumidor, talvez o alcance da manipulação algorítmica também careça de regulamentação.

O preditivo e a conformidade – A Bela está adormecida

Vive-se a falsa aparência do valioso pela enganadora valia da popularidade. O uso de dados que visariam a chamada personalização são afinal o bico da roca para que a previsibilidade da relação emissor e recetor / remetente e destinatário (de produtos) não se desvie da “norma” estatística.

A tecnologia que nos diz servir, pouco impulsiona a oportunidade da inovação anunciada se analisarmos o valor para o utilizador. De facto, ao sonegar o acesso à novidade gera insatisfação. Os utilizadores preferem conteúdos baseados na novidade e que lhes estimulem a surpresa, e não os sustentados pela popularidade (mesmo que o sejam entre os amigos) (Figueiredo, 2015).

Os grandes fornecedores de serviços baseados na Web recriaram o sentido de comunidade fazendo as pessoas acreditar na necessidade de lhes pertencer e de se comunicarem, nomeadamente com base na estrutura, confiança e semelhança. Os links sociais que transmitem informações explícitas associadas a informações implícitas tornaram mútuo o “significado” de conteúdo partilhado entre remetente e destinatário. E a partilha de atividades e explicitação de interesses comuns passaram a ser encaradas pelos utilizadores como recompensas do sistema. Fator que contribuiu para a cedência de privacidade e perca do controle do acesso à informação. Encontramos o que o algoritmo quer, e não ao que há disponível – a tal diversidade. A algoritmia ao proceder desta forma, ou seja, ao se basear nos princípios da organização social, omite dimensões do mundo e do indivíduo, tal como as relativas às características psicológicas e de satisfação no aspeto da riqueza da construção do significado – processo de interpretação da informação e de associação entre significado e emoções, nomeadamente sobre a forma como o significado emerge a partir do contexto.

Os resultados de tudo isto são visíveis e os alertas de perigo têm sido lançados de vários setores. Por exemplo, Ethan Zuckerman, diretor do centro de media cívica no MIT, e Cass Sunstein, autor do livro “Republic.com”, referem que o efeito de câmara de eco promove a intolerância, além de reduzir o comportamento democrático, pois as pessoas vão sendo gradualmente separadas por clusters de opinião. Por outro lado, há um crescente nível de conformidade na sociedade que resulta da limitação da liberdade “natural” de acesso a novas informações por parte das pessoas. Há ainda o perigo cognitivo relacionado com a diminuição da capacidade de interpretação da realidade circundante devido ao crescente aplanar cultural. Por fim, a inovação “Fluffy”. A pressa em consumir o tempo e a atenção das pessoas por parte de algumas tecnologias está a reduzir o valor agregado por estas em favor da sociedade.

Talvez fosse importante equacionar o desenvolvimento de tecnologias preventivas que promovessem a individuação, que desenvolve o indivíduo no seu todo, em vez da individualização, conducente a comportamentos egóicos que fomentam o egoísmo. Temos de deixar de acordar da dormência da Bela Adormecida e agir, por nós e pelos outros.

Referências

Bian, Y. (1997). Bringing Strong Ties Back in: Indirect Ties, Network Bridges, and Job Searches in China. American Sociological Review, Vol. 62, No. 3 (Jun., 1997), pp. 366-385.

Sunstein, C. (2001). Republic.Com. Princeton University Press, USA.

Figueiredo, C. (2014). Emotions and Recomender Systems – A Social Network Approach”, PhD thesis, FEUP.

Figueiredo, C., Chen, W. & Azevedo, J. (2015). Central Nodes and Surprise in Content Selection in SN. Computers in Human Behavior, Elsevier, vol. 51(A), pp. 382-392.

Golder, S.A. & Yardi, S. (2010). Structural Predictors of Tie Formation in Twitter: Transitivity and Mutuality. Proceedings of the Second IEEE International Conference on Social Computing, August 20-22. Minneapolis, MN.

Granovetter, M.S. (1973). The strength of weak ties. American Journal of Sociology, vol. 78, Nº 6, pp. 1360 – 1380.

Granovetter. M. (1983). The Strength of Weak Ties: A Network Theory Revisited. Sociology Theory, Vol. 1, pp. 201-233.

Jamieson, K.H., & Cappella, J.N., (2008). Echo Chamber: Rush Limbaugh and the Conservative Media Establishment. New York, NY: Oxford University Press.

Mcfadeyn, M.A, Semadeni, M., Cannella, A.A. Jr. (2009). Value of Strong Ties to Disconnected Others: Examining Knowledge Creation in Biomedicine. Organization Science. Vol. 20, No. 3, May–June 2009, pp. 552–564.

McLuhan, M. (1964). Understanding Media, The Extensions of Man. MIT Press, Cambridge, Mass.

McPherson, M., Smith-Lovin, L., & Cook, J.M. (2001). Birds of a feather: Homophily in social networks. Annual Review of Sociology, 27(1):415–444.

Mislove, A., Viswanath, B., Gummadi, K.P., & Druschel, P. (2010). You Are Who You Know: Inferring User Profiles in Online Social Networks. WSDM’10, February 4–6, New York City, New York, USA. ACM, 978-1-60558-889-6/10/02.

Sosa, M. (2011). Where Do Creative Interactions Come From? The Role of Tie Content and Social Networks. Organization Science, Vol.22, No.1, pp. 1–21.

Staber, U. (2004). Networking Beyond Organizational Boundaries: The Case of Project Organizations. Creativity and Innovation Management, Vol.3, Nº1, Blackwell Publishing, Ltd.

 

Um pensamento em “O Câmara de Eco Social e a Bela Adormecida”

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