Proc. do Juízo Local Cível de Ponta Delgada – Juiz 3

            Sumário:

         Constando do registo predial, numa freguesia dos Açores, a descrição de um terreno com uma casa destinada a habitação que constitui benfeitorias, com inscrições que respeitam, uma à aquisição das benfeitorias por terceiro e outra à aquisição do terreno a favor do autor, há a presunção de que existe a propriedade das benfeitorias e a propriedade do terreno, cada uma delas a favor de pessoas diferentes, pelo que o autor, não se propondo ilidir tal presunção, não pode reivindicar todo o prédio, incluindo terreno e benfeitorias.

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            A, casado, intentou a presente acção declarativa com processo comum contra B, divorciado, pedindo, no que ainda importa, a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o prédio que identifica e, consequentemente, a restituir o prédio.

            Para tanto, alega que é proprietário do prédio, constituído por terreno urbanizado, medindo 714 m2, com uma casa destinada a habitação, que constitui benfeitorias (pertencentes a herdeiros a J e de M), descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º 0000 e inscrito na respectiva matriz predial com o artigo 000, com o valor patrimonial tributário de 13.050€; sem qualquer título e contra a vontade do autor os réus erigiram no aludido imóvel um edifício que afectam a habitação própria, sem licença e contra a vontade do autor; instado, verbalmente e mesmo por escrito pelo autor e pelo seu procurador, a fazer entrega do terreno que ocupa contra a vontade do dono ou, ao menos, a legitimar e titular a ocupação que faz, mediante a celebração de contrato de arrendamento do solo, ou a efectuar o pagamento de contrapartida à referida ocupação, o réu nada diz.

            O réu contestou, impugnando parte dos factos e excepcionando, alegando que ele, réu, adquiriu o prédio por usucapião, por estar na sua posse, por si e antecessores, há mais de 50 anos, como se fosse seu proprietário; na sequência, depois de concluir pela improcedência da acção, deduz reconvenção, pedindo que se declare que é ele o proprietário do prédio e se determine o cancelamento das inscrições a favor do autor e outras que se mostrem incompatíveis com tal declaração.

            O autor replicou, impugnando os factos base da reconvenção deduzida e dizendo que o réu é apenas um dos herdeiros titulares das benfeitorias pertencentes aos seus antecessores, não do terreno urbanizado onde elas se encontram implantadas pertencente ao autor; em consequência, conclui pela improcedência da reconvenção.

            Depois o tribunal proferiu um saneador sentença julgando improcedentes quer a acção quer a reconvenção e, em consequência, absolveu o réu do pedido do autor e o autor do pedido do réu.

          O autor vem recorrer deste saneador-sentença – para que seja revogado e substituído por outro que julgue a acção procedente e condene o réu a reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o prédio 2412, com as legais consequências – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

         I – O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade (ut art. 1311 do CC).

         II – Interposta acção de reivindicação e demonstrando o autor – provado que está – ser proprietário de prédio urbanizado em que se encontram edificadas benfeitorias que integram a herança aberta, inventariadas tais benfeitorias e não partilhadas, em que o réu reside, ocupando o terreno urbanizado contra a vontade do seu dono, o reconhecimento do direito de propriedade, como tal reivindicado, com a legal consequência apenas pode improceder por via de excepção de direito oponível.

III – As “benfeitorias” conceituadas que sejam pela manifestação de implantação de obra em terreno alheio, ainda que autorizada, em termos históricos, no caso, por grandes senhores que arrendavam porções de terreno a trabalhadores autorizando-os que construíssem, não consubstanciam direito análogo ou equiparado, nem se pode dizer, vestem as vestes do direito de superfície, só podem constituir um direito de natureza obrigacional, já que, a tipificada tipicidade dos direitos reais, à luz da lei, é incontornável.

IV – O ocupante de benfeitorias edificadas em solo alheio, sem título, é um mero detentor.

V – A sentença que de um lado dá por provado o direito de propriedade do autor sobre terreno urbanizado em que se encontram edificadas benfeitorias pertencentes a herança aberta, consistindo estas numa casa que vem sendo habitada pelo réu, por mera tolerância dos herdeiros nesta, sem que tenha sido excepcionado direito oponível àquele, deve condenar este detentor a reconhecer o direito de propriedade invocado com as legais consequências, sob pena de constituir um contra-senso.

VI – E ilegalidade posto que viole o disposto nos arts 1306, 1308 e 1311 do CC.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                      *

            Questão que importa decidir: se a acção não devia ter sido julgada improcedente.

                                                      *

            Factos tidos como provados

  1. O autor é proprietário do prédio constituído por terreno urbanizado, medindo 714 m2, com casa destinada a habitação, que constitui benfeitorias, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º 0000 e inscrito na respectiva matriz predial com o artigo 000, com o valor patrimonial tributário de 13.050€.
  2. Na sequência da herança aberta por óbitos de J e de MV, foram habilitados como seus herdeiros, entre outros, os filhos ML e MC.
  3. O réu é filho de AR e de MV.
  4. Em 27/05/2015, foi apresentada a relação de bens, no âmbito do processo de inventário n.º 000, que corre termos pelo Cartório Notarial de Ponta Delgada, da qual faz parte o prédio identificado em 1 [ou melhor, como se dirá abaixo, as benfeitorias referidas em 1 – parenteses introduzido por este acórdão do TRL].
  5. O réu foi citado, em 21/07/2015, não tendo apresentado reclamação à relação de bens referida em 4.
  6. A presente acção declarativa foi intentada em 22/04/2016.
  7. As benfeitorias referidas em 1 pertencem à herança aberta por óbitos de J e de MV, as quais estão ocupadas pelo réu.

                                                      *

            Face a estes factos dados como provados, o saneador-sentença fez a seguinte construção para considerar improcedente a acção, em síntese da responsabilidade deste acórdão:

            A acção é uma acção de reivindicação, prevista no artigo 1311 do Código Civil (CC). É sobre o reivindicante que recai o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do réu. No caso dos autos, está provado que o autor é proprietário do prédio 2412, mas está igualmente provado que as benfeitorias – a casa ocupada pelo réu no prédio reivindicado pelo autor -, registadas como tal, pertencem a terceiro; estas benfeitorias, nos Açores, não correspondem ao conceito jurídico usual, mas sim ao direito de superfície (nos termos sugeridos no parecer 88/99 DSJ-CT emitido pelo Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, homologado por despacho do director-geral de 26/05/2000). Assim, existe, presumivelmente (art. 7 do Código do Registo Predial), uma propriedade fraccionada: o autor é proprietário do solo e terceiro é proprietário da superfície. Não sendo o autor proprietário do prédio, mas apenas do solo, não pode reivindicar o prédio, pelo que a acção, que diz respeito ao prédio e não ao solo, não pode proceder. O facto de o autor ser proprietário do solo onde estão implantadas as benfeitorias, não constitui fundamento bastante para o pedido de entrega das mesmas. Para que a acção pudesse proceder, e tendo em conta o modo como está configurada, o autor teria que alegar e provar, designadamente, que o solo e a obra se uniram como objecto único da propriedade plena do autor (o que não aconteceu, como já referido).

                                                      *

            Decidindo:

            Sem reflexo nas conclusões do recurso, o autor começa por referir que o que consta do ponto 4 dos factos provados deverá ser alterado de modo a que fique a constar que da relação de bens do inventário faz parte, não o prédio identificado em 1, mas as “benfeitorias constituídas por casa de habitação edificadas no terreno urbanizado da propriedade do autor.”

            O autor tem razão na parte em que entende que da relação de bens do inventário constam as benfeitorias e não o prédio onde elas estão edificadas, mas embora formulado de forma imprecisa é já isso que resulta dos factos provados sob os pontos 1 e 7.

            Mas esta argumentação o que faz é lembrar que o próprio autor aceita, como já resulta da réplica e das próprias conclusões do recurso, que o terreno e as benfeitorias nele implantadas são objecto de dois direitos diferentes e com titulares diferentes: o terreno ou solo pertence ao autor e as benfeitorias pertencem a terceiro.

            E isto tem reflexos no registo predial que de forma bem evidente diz respeito por um lado, ao terreno e, por outro, às benfeitorias.

            Com efeito, em complemento àqueles pontos de facto, deixa-se agora transcrita a informação predial em vigor sobre o prédio 0000/20130000:

DESCRIÇÕES – AVERBAMENTOS – ANOTAÇÕES

URBANO

SITUADO EM: X

Rua X

ÁREA TOTAL: 714 M2

MATRIZ n.º: 000

COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES:

Terreno urbanizado, com urna casa destinada a habitação, que constitui benfeitorias, norte Rua X, sul JS, nascente MT e poente AC.

Desanexada por anotação do descrito sob o n.º 123/X

O(A) Conservador(a)

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Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Açores).

OFICIOSO

Ap. 1001 de 2013/05/24       2013/05/30 11:27:38 – ANOTAÇÃO

Duplicado com o descrito sob o n.º 456/X

O(A) Conservador (a)

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Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Açores).

OFICIOSO

  1. de 2013/07/17 2013/07/18 12:21:31 – ANOTAÇÃO

Inutilizada a descrição n.º 789/X, por duplicação.

O(A) Conservador (a)

INSCRIÇÕES – AVERBAMENTOS – ANOTAÇÕES

  1. 2 de 1958/02/20 – Aquisição

CAUSA: Doação

SUJEITO(S) ATIVO(S):

** J

Solteiro(a), Maior

SUJEITO(S) PASSIVO(S):

** M

Viúvo(a)

AQUISIÇÃO DAS BENFEITORIAS

Esta inscrição refere-se ao prédio n.º 789/X

O(A) Conservador (a)

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Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Açores).

  1. 1001 de 2013/05/24 11:50:16 UTC – Aquisição

Registado no Sistema em: 2013/05/24 11:50:16 UTC

PROVISÓRIO POR DÚVIDAS

ABRANGE 3 PRÉDIOS

CAUSA: Compra

SUJEITO(S) ATIVO(S):

** JV

NIF  

Casado/a com […] no regime de Comunhão de adquiridos

NIF do Cônjuge […]

Morada:  

SUJEITO(S) PASSIVO(S):

** AJ

NIF […]

Casado/a com […] no regime de Comunhão de adquiridos

NIF do Cônjuge […]

Morada: […]

O(A) Conservador (a)

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Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Açores).

OFICIOSO

Anotação – AP. 1001 de 2013/05/24 12:57:25 UTC – Notificação Registado no Sistema em: 2013/06/03 12:57:25 UTe

DA APRESENT. 1001 de 2013/05/24 – Aquisição

DATA DA NOTIFICAÇÃO: 2013/06/06

O(A) Conservador (a)

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Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada (Açores).

AVERB. – AP. 1894 de 2013/07/17 15:52:20 UTC – Remoção de Dúvidas Registado no Sistema em: 2013/07/17 15:52:20 UTC

DA APRESENT. 1001 de 2013/05/24 – Aquisição

AQUISIÇÃO DO TERRENO

O(A) Conservador (a)

            Por outro lado, na caderneta predial urbana, junta a fls. 5v/6, fala-se num titular superficiário (herança de MV) perpétuo e no nif do proprietário da raiz (que é o autor).

            Posto isto, temos claramente um único registo predial respeitante a dois objectos distintos: um dito ‘benfeitorias’, que foi adquirido por J em 1958, que antes estava autonomizado num outro registo e que passou a fazer parte deste, inutilizando-se o anterior por duplicação, e um outro dito ‘terreno’, que foi adquirido pelo autor em 2013.

            Assim, o autor é apenas proprietário do terreno e não também das benfeitorias, estando estas registadas como objecto distinto do terreno a favor de um terceiro desde 1953.

            Estas benfeitorias não são, segundo o autor, um direito real.

            A verdade, porém, é que, por um lado, factos que dizem respeito ao direito sobre elas estão inscritos no registo predial, há mais de 60 anos, certamente para que lhes seja publicidade, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário e para que possam produzir efeitos contra terceiros (arts. 1 e 5/1, ambos do Código do Registo Predial) e por força desse registo, presume-se que o direito sobre elas existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define (art. 7 do CRP).

            E o próprio autor assim o entende, pois que logo na réplica disse que as benfeitorias pertenciam a titulares diferentes do réu e falou delas como coisas diferentes do terreno que lhe pertence.

            Por outro lado, o que tal representa é que uma obra implantada num terreno pertence a pessoa diferente daquela a quem o terreno pertence, o que indicia um desmembramento da propriedade. E o registo publicita que o autor apenas tem o terreno e não a propriedade das benfeitorias.

            Por fim, este desmembramento da propriedade, parece ser idêntico ao que se verifica na colonia, direito que também não estava previsto na lei, mas que, não obstante isso, acabou por ser reconhecido por ela (Dec.-Lei 47937, de 15/09/1967) incluindo o seu registo predial. 

            Neste contexto, ganham relevo as transcrições feitas no saneador-sentença recorrido, de passagens de um parecer do conselho técnico dos registos e notariado, proferido no proc. nº C.P. 88/99 DSJ-CT (consultado e consultável no link acabado de inserir) dado a uma consulta feita por uma Srª conservadora do registo predial na Ilha de São Miguel, Açores, sobre o registo de «benfeitorias» na Ilha de S. Miguel e procedimento jurídico-registral.

            Aí a Srª Conservadora constatava a existência de descrições de “prédios” que eram benfeitorias edificadas em terrenos descritos autonomamente e pertencentes a pessoas diferentes dos proprietários daquelas, que depois se confundiam numa só descrição mas com inscrições de propriedades umas referentes às benfeitorias e outras referentes ao terreno, o que se lhe afigurava um “evidente absurdo registral”, e explicava que era “prática ancestral nesta Ilha de S. Miguel conferir autonomia jurídica, em termos de dominialidade, a construções edificadas em terrenos alheios ou mesmo próprios, tudo sob a designação de “benfeitorias”, atribuída a essas construções e que tal “costume” está ancorado em especificidades históricas (…) que no essencial (…) se prendem com antigos modos de exploração agrícola, segundo os quais um grande proprietário, empregando trabalhadores, lhes arrendava porções do seu terreno e aí os autorizava a construir casas de habitação ou arrumos de alfaias ou gado». Ora, por entender que tal costume não tinha nenhum valor jurídico, em face do princípio da tipicidade ou numerus clausus dos direitos reais (art.s 1306/1 e 1315 do CC), e da ausência de norma legal que remeta nesta sede para os usos (art. 3/1 do CC), perguntava se não devia promover oficiosamente a declaração de nulidade de tais registos, a não ser que o interessado nas benfeitorias as tivesse adquirido nos quadros do direito de superfície ou do mecanismo da acessão (esta é uma síntese curta feita por este TRL da consulta feita em termos muito mais técnicos e completos).

            Ora, foi então dito, pelo conselho técnico, que resultava dos autos que o termo ‘benfeitorias’ é usado na Ilha de S. Miguel com um significado não coincidente com o conceito jurídico de benfeitoria. Quererá ele significar o direito a uma obra implantada em terreno alheio – em consequência de uma relação ou vínculo jurídico entre o proprietário do solo e o titular do direito ao implante -, ou a própria obra, objecto de tal direito.

            Depois reconhece que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio do numerus clausus ou da taxatividade: o direito das coisas tende, não apenas a oferecer-se em tipos característicos, mas a oferecer-se numa «tipologia taxativa», num elenco fechado de formas ou de direitos (cfr. art. 1306/1 do CC) e, de facto, a lei não prevê expressamente este direito real [fora do âmbito do direito de superfície, como refere a consulente].

            Acrescenta que, não obstante, há quem defenda que o costume [nota 12: Enquanto norma de direito consuetudinário, e não enquanto «costumes de facto» a que se aplicará o art. 3 do CC (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit, Vol. I, pág. 11)] é uma fonte de direito hierarquicamente equivalente à lei, referindo nesse sentido Oliveira Ascensão [nota 13: In Direito Civil-Reais, 5ª ed., pág. 162], que escreveu: «Temos pois que, qualquer que seja a opinião do legislador físico e por mais expressos que sejam os textos legais, é possível, por via consuetudinária, a introdução de novas figuras de direito real» [nota 14: Foi, aliás, o que aconteceu com a colonia, própria da Ilha da Madeira, que Oliveira Ascensão, op. cit., pág. 651, considera que se apresenta «como o mais complexo direito real existente na ordem jurídica portuguesa» […]].

            Depois lembra que era muito discutida a admissibilidade do direito de superfície no nosso sistema legal anterior à Lei nº 2030, de 22/07/1948, que aliás o veio a consagrar apenas em relação aos terrenos do domínio privado do Estado, das autarquias locais e das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (art. 22º, nº 1), mas que não obstante Cunha Gonçalves [nota 16: In Tratado de Direito Civil, Vol. XI, pág. 295] considerava que a 2ª parte do art. 2308 do Código Civil de 1867 e as regras gerais da propriedade eram suficientes para sobre elas se construir a teoria do instituto; lembra ainda que Cunha Gonçalves considera que no contrato de colonia, «o direito do colono é um verdadeiro direito de superfície» (op. cit., pág. 303).

              Ora, perante isto, dizia o CT que lhe parecia legítimo concluir que as tábuas publicitam um direito (real) sobre uma obra implantada em terreno alheio. Direito cuja tipologia será discutível. Mas, mais do que discutir a sua natureza, o que importava era acentuar que não nos encontramos perante um caso evidente de inexistência de uma figura real, a demandar a adopção de procedimentos tendentes à sua eliminação das tábuas, não se lhe afigurando que as tábuas publicitem um “absurdo registral” [pois que, em linhas gerais, se adopta a técnica prevista no diploma referido para a colonia]. Os registos lavrados na ficha constituem presunção da existência de dois direitos: o direito ao solo e o direito ao implante. As vicissitudes que venham a ocorrer em cada um dos direitos deverão, a nosso ver, ter acolhimento nas tábuas (o parecer foi aprovado em sessão do Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado de 26/05/2000; o relator foi João Guimarães Gomes de Bastos; foi homologado por despacho do director-geral, de 26/05/2000).

            Este parecer foi mais tarde tido em conta num caso mais ou menos parecido na parte que importa, Pº RP 32/2007 DSJ-CT (consultado e consultável no link acabado de inserir), com parecer aprovado em sessão do CT de 27/03/2008, tendo como relator António Manuel Fernandes Lopes e um voto de vencido de João Guimarães Gomes Bastos, sendo homologado pelo Presidente do IRN em 31/03/2008).

            Neste outro parecer também se constatou, na parte que aqui importa, a inscrição de transmissão de benfeitorias, efectuada sob a ap. 09 do dia 20/12/1926 a favor de um sujeito que também tem registo de arrendamento, e a inscrição a favor de outro do registo de aquisição do terreno onde tais benfeitorias se acham implantadas; descreve-se depois uma acção em que os autores invocando a qualidade de proprietários do terreno vêm alegar que nele foram construídas, ao abrigo de contrato de arrendamento, casas que constituem benfeitorias em terreno alheio, realizadas ao abrigo de contrato de arrendamento e que pertencem hoje aos demandados, na qualidade de sucessores dos primitivos arrendatários e de herdeiros de x.

            Depois diz-se que um dos princípios estruturantes da ordenação dominial portuguesa é o chamado princípio da tipicidade taxativa (CC, art. 1306), segundo o qual só são admitidas as restrições ao direito de propriedade com natureza real (é dizer, com eficácia erga omnes) nos casos expressamente previstos na lei. E idêntico princípio impera no campo dos factos registáveis, que são só os que a lei determina (CRP, art. 2.º, n.º 1, maxime al. u)) [cfr. Catarino Nunes, Código do Registo Predial Anotado, 1968, p. 15], sendo que as benfeitorias, no sentido vulgar do termo, não são direitos reais registáveis. Ora, nem as benfeitorias consubstanciam uma qualquer figura de natureza real, […] nem os sucessivos códigos do registo predial, coerentemente, alguma vez as consideraram registáveis […]

            Mas continua: Como abundantemente o demonstra o caso dos autos, não foi porém a falta de previsão legal que impediu que registos de aquisição de benfeitorias em dado momento histórico efectivamente se fizessem.

            Depois lembra que também Baptista Machado (in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 7.ª reimp., 1994, págs. 153 e ss., especialmente p. 159) escreve que, não obstante a implícita proscrição do costume como fonte de direito inferível do disposto nos arts. 1 a 4 do CC, «sendo o problema das fontes um problema que transcende a vontade do legislador, …um problema da alçada da teoria e da metodologia do direito, o não reconhecimento pelo legislador do costume como fonte de direito não tem carácter decisivo». E Castanheira Neves (in Enciclopédia Polis, vol. 2, 2ª ed., 1998, artigo “Fontes do Direito”, pp. 1459 e ss), discorre, na mesma linha, que nas fontes do direito «o problema não é o de saber que formas pode mobilizar o poder político para prescrever Direito, mas o de saber de que modo se constitui a juridicidade vigente» (p. 1491), a partir do que conclui que «terá de admitir-se a existência de Direito vigente sem que tenha sido formalmente prescrito (será o caso, justamente, do Direito consuetudinário…)», e bem assim que o Direito não deixa de ser positivamente vigente «só porque os actos constitutivos de que emerge não são abrangidos ou são mesmo excluídos pelas definições de fontes também formalmente decretadas.» E mais adiante (p. 1503): « …não será do que quer que as leis digam a esse propósito que dependerá a validade ou a invalidade jurídica tanto do costume secundum lege e praeter legem como do próprio costume contra legem, mas unicamente do mérito da sua própria juridicidade e dos factores que garantam a sua inserção na normativa vigência do corpus iuris».

            E lembra que figura real e paradigmática de origem costumeira é a colonia, típica da ilha da Madeira, expressamente abolida ex nunc pelo DL 47.937, diploma que todavia continuou a reconhecer e a disciplinar os respectivos contratos celebrados até à sua entrada em vigor (cfr. Oliveira Ascensão, op. cit., p. 649), significando «o direito a uma obra implantada em terreno alheio – em consequência de uma relação ou vínculo jurídico entre o proprietário do solo e o titular do direito ao implante –, ou a própria obra, objecto de tal direito.» Uma figura cujo perfil não andará pois longe do que se reconhece caracterizar o direito de superfície (CC, art. 1524).

            Ora, avança, é muito razoável admitir que nas benfeitorias […] haja a comunidade local – a consciência jurídica colectiva que nessa comunidade historicamente se tenha sedimentado – visto um bem económica e juridicamente transmissível de forma autónoma, com vida própria “destacável” da vida económica e jurídica do terreno em que se alicerçam. Sinal muito forte do generalizado consenso a esse respeito, aliás – e portanto de que a ideia dum domínio a se sobre tais benfeitorias se encontrará enraizada na consciência jurídica colectiva dos residentes naquela parte do país –, é não só o próprio registo de aquisição do terreno feito a favor dos autores, como sobretudo muito eloquentemente os próprios termos do litígio levado a juízo. Porque é bem vincada a pressuposição (a aceitação), de ambos os lados da lide, da existência duma dualidade ou sobreposição de domínios sobre o terreno e sobre as casas.

            Seja como for, continua o CT, por maiores e mais consistentes que fossem as dúvidas que porventura fosse lícito – e não cremos que seja – levantar a respeito da validade e relevância do registo de transmissão de benfeitorias, assim como acerca da possibilidade de tais benfeitorias constituírem elas mesmas, no quadro do direito historicamente vigente, objecto de apropriação separada, não seria nunca este o momento oportuno de expressá-las, e muito menos de preconizar uma qualquer actuação destinada a “dar sem efeito” os registos efectuados.

            E mais à frente: Do registo de transmissão das benfeitorias a favor de X… (que também é arrendatário inscrito) continua assim a emergir a presunção (CRP, art. 7) de que é ele – ou os seus herdeiros – o titular das benfeitorias; que é portanto seu o domínio das casas, em sobreposição ou paralelamente ao domínio que recai sobre o terreno. […] Haverá por conseguinte, em relação ao prédio, dois tratos correndo paralelamente, tantos quantos os domínios inscritos – e a um e a outro cumprirá prestar a devida obediência.

                                                      *

            Posto tudo isto, sejam ou não estas benfeitorias, nos Açores, o equivalente das benfeitorias da colonia na Madeira, reguladas por costume e não pela lei, com um regime que não é conhecido neste processo, e tenham ou não semelhanças ou analogias com o direito de superfície ou mais propriamente com a enfiteuse (a questão, quanto à colonia, é desenvolvida expressamente por Oliveira Ascensão, no Direito Civil, Reais, já citado acima, págs. 649 a 652; veja-se agora também Henrique de Sousa Antunes, seguindo de perto Oliveira Ascensão, Direitos Reais, UCE, Junho 2017, págs. 499 a 505, sobre a enfiteuse, mas com notas para a colonia), a verdade é que elas estão registadas desde 1953 a favor de terceiro, sendo que a favor do autor apenas foi inscrita a aquisição do terreno e não delas, pelo que, para o tribunal, não pode deixar de se entender que o autor é presumidamente apenas proprietário do terreno e não também das benfeitorias – não se propondo demonstrar o contrário, pois que nem alegou factos para isso -, não tendo, por isso, qualquer título que lhe permita reivindicar todo o prédio, ou seja, o terreno com as benfeitorias, como o fez nestes autos. Justificando-se, por isso, a improcedência da acção logo no saneador.

            Tudo isto, no pressuposto, assumido nos pareceres do CT dos registos e do notariado de que um direito real pode ter origem consuetudinária, não se opondo a tal o princípio da tipicidade dos direitos reais, pressuposto que aqui também se assume, de acordo com a posição de Oliveira Ascensão (Reais, citado, págs. 153 a 163).

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pelo autor.

            Lisboa, 14/09/2017

            Pedro Martins

           1.º Adjunto

           2.º Adjunto

 

Notas:

Marta Isabel Ribeiro de Bessa “CHÃOS DE MELHORAS” Dissertação no âmbito do 2º Ciclo em Ciências Jurídico-Forenses (conducente ao grau de Mestre) orientada pela Professora Doutora Fernanda Paula Marques de Oliveira e apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Janeiro 2020 => Lei nº 72/2019 de 2/9 – consagra o Regime Jurídico da Regularização dos Chãos de Melhoras; entrou em vigor no pretérito dia 2-10-2019.