Carta ao Leitor: Desequilíbrio flagrante
A disparidade entre quem tem a máquina e quem não tem fica mais nítida e injusta a cada eleição
A reeleição a cargos executivos é um direito relativamente recente no Brasil, iniciado em 1998. De lá para cá, todos os presidentes da República foram bem-sucedidos ao disputar um segundo mandato. Fernando Henrique Cardoso bateu Lula no primeiro turno. Lula venceu Geraldo Alckmin no segundo turno com mais de 60% dos votos válidos. Em 2014, também no segundo turno e apesar dos índices ruins de avaliação, Dilma Rousseff triunfou sobre Aécio Neves. Em todos esses casos, creditou-se à máquina pública um peso muitas vezes decisivo a favor do mandatário. FHC, por exemplo, segurou até depois das eleições a sensação de bem-estar econômico gerado pela paridade entre o dólar e o real. Lula lançou mão de bilionários programas sociais como antídoto aos múltiplos escândalos de corrupção que marcaram sua passagem pelo Palácio do Planalto. Dilma não hesitou em anunciar às vésperas do pleito um rol de bondades que incluía renúncias fiscais, aumento no valor de benefícios e controle de tarifas.
Em 2022, esse paradigma será posto à prova. Diferentemente de seus antecessores, Jair Bolsonaro está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto. Como fizeram outros presidentes, também está lançando mão de um arsenal de medidas de forte impacto eleitoral. A três meses do pleito, o governo reajustou o valor do Auxílio Brasil, beneficiando 20 milhões de famílias, contemplou 900 000 caminhoneiros com um voucher mensal de 1 000 reais até o fim do ano, vai entregar um vale-gás a 5,7 milhões de brasileiros carentes e forçou a redução do ICMS dos combustíveis. Além disso, foram enviados aos municípios quase 7 bilhões de reais em recursos do Orçamento federal apenas nos últimos seis meses. Convertida em escolas, postos de saúde, redes de esgoto e asfalto, essa montanha de dinheiro representa um enorme ativo eleitoral para prefeitos, deputados, senadores, governadores e, claro, para o presidente da República. E essas são apenas ações no atacado. No varejo, os governantes (todos) renegociam dívidas, perdoam multas, adiantam pagamentos.
O resultado dessa movimentação tem sido um flagrante desequilíbrio entre as candidaturas, ao favorecer os donos das canetas, como mostra uma reportagem dos jornalistas Daniel Pereira e Hugo Marques, da sucursal de VEJA em Brasília. Pereira, que cobre a sua sexta eleição presidencial, observa que a disparidade entre quem tem a máquina e quem não tem fica mais nítida e injusta a cada pleito. Marques foi verificar in loco o poder das verbas federais. Há muitos exemplos. Em Gameleira, no interior de Goiás, o cenário mudou radicalmente para melhor nos últimos tempos. Para lá, foram destinados recursos do Orçamento federal equivalentes a dois anos de toda a arrecadação do município. Em Cutias, no Amapá, uma placa na entrada da cidade chama a atenção para o nome do político “responsável” pela liberação dos recursos para “a maior obra de pavimentação asfáltica do município”. Evidentemente, isso faz toda a diferença na hora de o eleitor escolher em quem vai votar. Além de criar uma confusão desnecessária com as urnas eletrônicas, Bolsonaro aposta firmemente nessa frente: a força da engrenagem do poder para capturar votos e reverter a enorme desvantagem que tem em relação ao seu principal adversário. Em 2020, dos 3 510 prefeitos que se candidataram à reeleição, 63% foram bem-sucedidos — índice praticamente igual ao dos governadores que já conseguiram o segundo mandato. No comando de máquinas monumentais, os presidentes da República, por enquanto, têm 100% de sucesso.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799