A MORTE DE BETH CARVALHO

“Eu já sabia que era internacional, mas interplanetária é demais!”. A exclamação feita por Elizabeth Santos Leal de Carvalho ao jornal paulista O Estado De São Paulo, em 1997, dava conta de como o universo conspira a favor de quem faz dele um lugar mais prazeroso.

“Pra ‘despertar’ o robô Sojouner pra mais um dia de trabalho na superfície de Marte, os cientistas da Nasa escolheram ontem o samba ‘Coisinha do Pai’, interpretada por Elba Ramalho e Jair Rodrigues. A escolha da trilha sonora foi da brasileira Jacqueline Lyra, 35, engenheira aeroespacial responsável pelo controle de temperatura do robô e da nave Pathfinder, que o levou ao planeta Marte”, contava na Folha De São Paulo o jornalista Paulo César Castro. “A música, segundo a engenheira, é uma ‘forma simbólica’ de enviar o sinal pra que o robô comece a trabalhar. Esta era a forma usada pra acordar os astronautas de outras expedições espaciais. Nos dias anteriores, a trilha sonora foi composta por músicas de rock. No primeiro dia, foi a música ‘Mad About You’, música-tema do seriado norte-americano com o mesmo nome. O samba seria ‘enviado’ da Califórnia até o robô a partir das 19h de ontem (23h em Brasília). O dia começou ontem em Marte neste horário. Jacqueline disse que escolheu a música, do CD ‘Casa De Samba’, depois de ouvi-la em casa e lembrar os dias festivos que a equipe do JPL (Laboratório de Propulsão a Jato), que projetou o robô pra Nasa, tem passado com o sucesso da expedição”.

“O CD é uma coletânea de sambas gravados por vários intérpretes” – continua a matéria. “A música é de autoria de Jorge Aragão, Almir Guineto e Luís Carlos, e tem sua interpretação mais conhecida feita pela cantora Beth Carvalho. O trecho, segundo Jacqueline, que a despertou foi: ‘Você vale ouro/todo o meu tesouro (…) Agradeço a Deus porque lhe fez/Ô coisinha tão bonitinha do pai’. A engenheira disse que a estrofe representa o carinho que os cientistas têm pelo pequeno robô”.

Jacqueline, nascida no Rio de Janeiro, é como todo brasileiro que tomou contato com a voz indiscutivelmente potente e suave de Beth Carvalho: se enche de orgulho. Uma obra única que foi acumulando durante a carreira não só sucessos, como também afilhados e descobertas que criaram outras tantas carreiras de sucesso – o próprio Aragão, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, entre muitos outros, agradecem à Madrinha do Samba.

Foram mais de cinquenta anos de estrada e trinta e quatro discos gravados, dezessete discos de ouro e nove de platina, impulsionados por sucessos absolutos, como “Coisinha Do Pai, “A Chuva Cai”, “Vou Festejar”, a atualíssima “Saco De Feijão”, “1800 Colinas”, “Olho Por Olho”, “Camarão Que Dorme A Onda Leva” (que lançou Zeca Pagodinho), “Bafo Da Onça”, “Samba De Arerê”, “Bar Da Neguinha” e haja etcetera.

Beth nasceu no Rio de Janeiro, dia 5 de maio de 1946. Morreu dia 30 de abril de 2019, às vésperas de completar 73 anos. Nova, muito nova, especialmente pra quem preenchia os palcos com tanta vitalidade.

O último show de Beth Carvalho que vi foi em São Paulo, em 2007 (se não me engano). A recordação do show, como os tantos que vi de Jorge Aragão, do Fundo De Quintal, do falecido Luiz Carlos Da Vila, de Monarco e do próprio Zeca Pagodinho, são de que a música extremamente popular brasileira é de uma qualidade insofismável. Do começo ao fim, umas trinta, quarenta músicas e o espectador se pega conhecendo cada uma delas, como velhas amigas, aqueles rostos conhecidos que se conhece não se sabe de onde, mas apenas sabe serem conhecidos. Beth, divertida e divertindo-se no palco, entretinha a plateia até as pessoas pedirem um arrego que nunca vinha. Noite realizada, uma festa transportada das áreas que a sociedade jogou à periferia ao mundo reverencial das elites. Beth sabia como poucos fazer isso. E ensinou outros a fazerem.

Ia a pagodes, não importa onde. Mangueira, Cacique de Ramos e Portela. São Paulo, Nova Iorque, Suíça e Marte. Não importa quão distante fosse, sua voz e sua música ali alcançavam pra transportar essa legítima felicidade, mensagem e autenticidade do povo, o carioca em especial. Ligada aos partidos da esquerda atuante brasileira, era também uma porta-voz de sofrimentos porque os via de perto.

“Você que se diz malandro / Malandro você não é / Porque não existe homem malandro pra mulher/ Você já fez a primeira / Mas a segunda não faz / A partir de hoje os direitos são iguais”, cantava em “Olho Por Olho” (em 1977), décadas antes do novo bem-vindo esforço feminista. Beth era moderna e “chão de fábrica” da música brasileira. Isso se refletia nos palcos periféricos ou nos palcos da elite. Esperava, claro, que captassem a mensagem.

Mas a classe média e os abastados brasileiros obviamente não compreenderam a mensagem que ela encantadoramente passou, nem que tantos outros seguem transmitindo. No Brasil da ignomínia dos Bolsonaros, Beth Carvalho talvez se sentisse deslocada. Com muitas dores, seus shows vinham sendo realizados com ela deitada, veja só. Um pecado. Desse jeito, pode ser que ela preferisse outros palcos, em outros planos. Em Madureira, em Marte ou no Céu, tanto faz. Em algum lugar onde o carnaval ainda é sinônimo de alegria e onde sua música ainda possa despertar os robôs pra vida.

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