Amar é regalia

Eu tinha 6 anos quando me apaixonei pelo Vitor. Ele era dez meses mais velho e já tinha trocado os dois dentes da frente. Era o melhor jogador de queimada da escola, tinha cabelo tigelinha e todas as terças e quintas lanchava um Guaraná Caçulinha com um bolinho Ana Maria. Vitor era mais velho, mas ainda não sabia escrever. Eu já sabia. Já escrevia meu nome e o dele e desenhava corações de cera na folha para dar graça àquela disforme letra de forma.

Eu gostava de Vitor mas ele não sabia. Nós éramos amigos. Eu o ajudava com a lição; ele me dava um pedaço de Ana Maria. Quando nós brincávamos de Corre Cutia, Vitor sempre jogava o lencinho atrás de mim porque sabia que eu não conseguia alcançá-lo. Eu corria; ele fugia.

Nunca contei a Vitor que eu gostava dele. Eu sabia que se contasse, a turma inteira riria. Gostar era coisa de criancinha e eu já era uma mocinha que lia e escrevia. Bobagem gostar de alguém por causa de um pouco de atenção e uma ou outra migalha de bolinho Ana Maria. Escondi meu sentimento e quando não dançamos juntos na festa junina, me tranquei no banheiro e chorei sozinha.

Desde o Vitor, descobri que vez ou outra o mundo realmente ri dos nossos sentimentos. Descobri que as pessoas têm cada vez menos tempo para desenhar corações de cera e brincar de Corre Cutia. Descobri que as pessoas vivem com pressa e sempre repetem que estão sem cabeça para o amor, essa bobagem, coisa de criancinha.

Descobri que os adultos também choram escondido e reprimem sentimentos por medo das risadas, dos desamores e até das alegrias. Descobri que não se deve amar ninguém que nos dê migalhas de bolinho ou atenção e que normalmente é esse tipo de gente que diz estar com problemas demais para se envolver numa relação.

Desde o Vitor, descobri que amar é privilégio dos que não sofrem a anestesia das relações passadas e dos problemas do dia-a-dia. Descobri que ser capaz de gostar dos outros é luxo; uma regalia. Por isso hoje ostento meus amores, paixões, tristezas e alegrias e tenho consciência de que sentimento é algo que às vezes causa certa fobia.

Ora ou outra a história se repete. Eu corria; ele fugia.

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