Há muitas coisas que cabem nos laços de irmandade. Irmãos geralmente partilham as primeiras memórias que os conformam como seres no mundo. Dividem histórias colhidas nos caminhos e veredas por que passaram. Repartem brincadeiras, segredos e amigos. Compartem ainda gostos, descobertas e alumbramentos.
Entre mim e minha irmã, há ainda uma partilha fundante de nossa experiência no mundo: o rito da escrita. Descobrimos juntos, embora por caminhos paralelos, esse sacro ofício de cultuar palavras. Éramos crianças, quando ela inventou sua primeira cerimônia de sagração da linguagem, num caderno dedicado à escrita de histórias – geralmente um pouco trágicas. Uma poeta que teve sua infância na prosa, redescobriu-se “um animal, no ermo / da linguagem” com a prosa poética e, por fim, assenhorou-se dos versos. Apropriei-me também desse rito brincante e, com onze ou doze anos, inventei-me poeta – somente muitos anos depois é que fui invocar as energias e os fluxos da prosa.
Durante toda essa trajetória, partilhar os ritos da escrita formou esse laço que participa dos fundamentos de nossa experiência de irmandade. Sempre fomos leitores um do outro. Muitas vezes, isso suplantava silêncios impostos pelo hábito – sobretudo meu, que sempre fui um animal silencioso e sempre usei a escrita também como um escudo, onde tentava realizar a impossível tarefa de esconder fragilidades. Não pude deixar de pensar no silêncio – e na escrita esgarçando sons e, por vezes, dissonâncias nas entranhas dele – ao ler os versos “Foi preciso muita palavra / até arrancar deste silêncio / um lugar seguro.”
A leitura é sempre uma experiência pessoal. Aqui neste livro, em especial, é muito frequente eu cometer o “pecado” de inserir na literatura o biográfico. Em diversos momentos, me lembro que uma parte central daquilo que nos tornamos teve início naquela longínqua atividade em que cada um de nós consagrou um caderno somente para a escrita. Vivíamos uma segunda mudança de cidade e, naquele momento em que o movimento parecia mais definitivo – dentro do provisório de todas as coisas –, tomávamos contato com a poesia de nosso pai, junto dos livros da minha mãe que haviam chegado do Rio de Janeiro – e longe dos quais estivemos por mais de um ano. Nosso pai já era uma ausência há alguns anos e, naquele contato com poucos de seus escritos, pudemos buscar uma espécie de diálogo literário para preencher o vazio de sua presença. Sei que essa é uma experiência marcante tanto para minha irmã quanto para mim. São essas histórias, que fundam nossa memória, que são evocadas por um poema como Art is a guaranty of sanity:
A aranha se nivela ao espaço urbano
o rosa é alimentado pelas cavidades orais
dois pedaços de madeira se abraçam
duas pessoas se amam e não se veem.
No refratário masculino ou museu
da imensa colcha de retalhos, almejo
Louise Bourgeois entre pernas mutiladas.
De peles que habitam almodôvares
de casas sobre eus femininos
de lampejos da gritaria
do passado, da máquina do tempo.
Na mania de cheirar o teto
de fotografar as árvores, de olhar o pai morto.
Amantes se deitam ao frio chão da sala
do ano de 2006 onde guarneço devires e cachorros.
Dez anos se passam: o céu se abre aos minaretes
o olhar de um muezim vale o templo
onde a arte é uma garantia de sanidade.
Após mais de vinte e cinco anos de leituras recíprocas, partilhadas desde o fim da infância, acompanho a publicação de Uma casa perto de um vulcão. Para o leitor e o irmão que sou, é um acontecimento muito especial. Se o irmão por vezes acaba lendo por trás de muitos versos os traços biográficos de memórias partilhadas, o leitor vai além, por não identificar na literatura uma escrita confessional. Ainda mais porque aqui encontro a força de um fenômeno da natureza, um derramamento poético diante do qual não é possível estar incólume. Com isso, adentramos noutras camadas vulcânicas da palavra, sendo especialmente tocado pelo trabalho com a linguagem dessa poeta que diz: “mastigo o ermo das palavras / quando não quero dizê-las / estendo os braços, frágeis de sentido / por algo como a luz – ou a fome.”
As lavas de um vulcão, quando emergem de dentro das entranhas da Terra, expõem as infâncias do mundo. O magma é uma espécie de memória, que dá a ver que as paisagens por aqui já foram formadas por ebuliente rocha líquida. Essa memória hoje irrompe, em geral, nas margens de placas tectônicas e quase sempre vem precedida por abalos sísmicos. Por isso, não nos enganemos: a profundeza dos chãos não guarda silêncios.
Pelo trabalho incansável nos meandros da linguagem, é possível exumar os diversos elementos que culminam na constituição da voz. São as lavas arrefecidas que se transformam em terras férteis e abrigam raízes em si. A poesia magmática ganha contornos de uma evocação de diversas formas de ancestralidade. Esse olhar poético voltado às origens (do cosmo, da casa/planeta que habitamos, das coisas, da vida, das estruturas que nos cercam, das referências, da linguagem e de si mesma) já se revela desde o primeiro poema do livro, chamado Infância, que anuncia: “Tenho a idade da Terra”.
Todos esses elementos ancestrais constituem a individualidade da voz em sua enunciação poética. E o tempo dessa condensação de elementos é o presente, ao qual esse livro também volta seu olhar. É possível vislumbrar os olhos frequentemente perplexos ante os absurdos que estruturam as relações de poder em que estamos inseridos. Nesse movimento, os versos se embatem tanto com as estruturas políticas dominantes quanto com a microfísica do poder, dando a ver dissimetrias. E se colocando, politicamente, ao lado daqueles que desejam e lutam e clamam e precisam de mudanças. Vapores é um exemplo expressivo desse movimento, trazendo versos como:
Caminho até a Praça XV
onde a seda vermelha
se enrola à estátua
equestre do general
Osório. Fagulhas
e fumaça alucinógena
fundida com os bronzes
dos canhões roubados
no Paraguai
incensam as acrobacias
das garotas
na manifestação.
Consciente de sua ancestralidade e desejosa de mudanças, a voz poética é permanentemente confrontada com as potências e os limites da linguagem. E, dessa forma, Uma casa perto de um vulcão faz uma incursão pelo pensamento meditativo. Talvez respondendo à constatação de que “Ninguém te ensina / a devassar / o cômodo / do que és”, a poesia adentra no terreno fecundo da reflexão filosófica. Ao lado de um fenômeno como um vulcão, é impossível que o pensamento não seja conclamado para dar conta, não de entender, mas talvez de erigir o mundo. “O mundo é menos / que acaso. Filos, ethos, ente / fatos.”
Esses três movimentos não são estanques. Talvez cada um deles predomine em determinado ponto da obra, mas todos podem ser percebidos constantemente, se fazendo presentes ao mesmo tempo em muitos poemas. E assim o livro se assemelha a um vulcão. O passado do mundo vem à tona na erupção de tudo o que se guarda nas funduras da terra. Esse passado/lava encontra de forma imediata e avassaladora com o presente em torno, a casa perto do vulcão, promovendo o embate e, por vezes até, a destruição das estruturas e a necessidade de novos fundamentos. E, por fim, no tempo mais lento da reflexão e do pensamento, a poesia sedimenta a experiência de perplexidade diante de tudo o que há, como as rochas que, quando resfriadas, deram conformação de eternidade aos últimos momentos de Pompeia e Herculano, após a erupção do Vesúvio.
Nesse sentido, a linguagem do livro recria a própria experiência vulcânica que enuncia. A palavra em ebulição escapa para a superfície da folha e se molda aos contornos da voz – com tudo aquilo que lhe dá um timbre único. Desse vulcão, repleto da densidade de camadas poéticas, irrompe um jorro sempre em busca de fissuras sobre o sólido para emergir, quente e denso, e assim lançar outras novas camadas sobre o mundo. “O futuro / é logo ali” e, para dar conta do vir a ser, é necessário imaginação – essa memória alucinada como um poema. “Um poema sempre um poema / à deriva / da próxima página.”
(O livro está à venda no site da Editora Patuá. Clique aqui.)
Uma casa perto de um vulcão – Roberta Tostes Daniel