A vida que imaginamos é uma casa transparente sem janelas nem saídas.
A gente a constrói com palavras e silêncios, abraços e afastamentos, uma vida paralela a isso que parece o concreto cotidiano. Ali o amado não entra, a amada fica de fora, sombras e luzes como espectros dançam e acenam. Fora dessa casa de vidro existe outra vida, que chamamos real. Com pão e manteiga, aroma de café, lençóis úmidos de sexo, filhos correndo, pais envelhecendo, contas a pagar, cargos a ocupar, nomes e marcas e tráfegos e sonhos e consumo, e sonhos de consumo.
E dor.
Lya Luft, O tigre na sombra
Neste anos de 2013, a seção Arte é… da Revista Evidência terá como tema central a produção artística brasileira dos séculos XX e XXI. Artistas que fizeram e ainda fazem história representam as mais diversas artes: música, cinema, literatura, teatro, artes plásticas. Com eles, o leitor poderá navegar pelo cenário artístico da contemporaneidade a partir de textos que desvendam, pelas mãos dos colunistas Cimara Valim, Elen Oliveira e Eduardo Pereira Machado, os recantos da obra de artistas seletos para, assim, (re)descobrir o que há de melhor na cultura nacional.
Para abrir o ano, iniciamos com a escritora Lya Luft, que possui obras apreciadas pela crítica literária e pelo público leitor. A seguir, confira alguns trechos da matéria publicada na edição de janeiro/2013. Para ler o texto na íntegra, acesse http://www.revistaevidencia.com.br/artigos/edicao-1728408/185-arte-e4916.html.
Descendente de imigrantes alemães, Lya Luft nasceu em Santa Cruz do Sul, em 1938. Suas raízes germânicas uniram-se à cultura brasileira ao longo de sua vida, seja pela soma de culturas que predominaram dentro do território familiar, seja pela de espaços por ela trilhados. A valorização da leitura fez com que, desde cedo, desfrutasse do prazer inerente ao mundo ficcional. Como tradutora, desde 1960, verteu para a Língua Portuguesa obras do inglês e do alemão de autores do cânone literário ocidental, a exemplo de Virginia Woolf, Thomas Mann, Doris Lessing e Günter Grass. Formada em Letras Anglo-Germânicas e Mestre em Linguística Aplicada (PUCRS) e Literatura Brasileira (UFRGS), atuou como professora de linguística e literatura nas Faculdades Porto-Alegrenses nos anos de 1970.
O romance As parceiras (1980), sua obra de estreia, deu início a uma sucessão de narrativas longas centradas em conflitos interiores e dramas familiares representativos do mundo contemporâneo. Pertencem a esse grupo os romances A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O quarto fechado (1984), Exílio (1987), A sentinela (1994), O ponto cego (1999) e O tigre na sombra (2012).
Em seu romance mais recente, O tigre na sombra, Luft mantém a exploração do universo interior, apresentando-nos os conflitos familiares sob a perspectiva de Dôda – ou Dolores – personagem marcada pelo problema físico que a acompanha ao longo da vida. A “menina da perna curta” enfrenta, muito mais que a dificuldade de caminhar, a rejeição de uma sociedade que não perdoa aqueles que não se ajustam aos seus padrões, exclusão vivida no próprio seio familiar. Em meio ao constante jogo de espelhos e sombras, o leitor vai se apropriando da trama que forma a narrativa, cuja chave está na incidência do duplo, seja pelo reflexo de Dolores nos espelhos; pelos contrapontos com a irmã Dália; pela presença de Deco, amigo imaginário; pelo simbolismo que paira no tigre que espera; ou pela presença constante do mar, no qual a narradora de visualiza.
Lya Luft é uma escritora de muitos caminhos. Em cada uma das veredas trilhadas, encontramos o absurdo, o grotesco e o impossível, mas também o ordinário, o terno, o cotidiano.