Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Burning Star Core – The Very Heart of the World (2005; Thin Wrist, EUA)

Bxc

Burning Star Core é C Spencer Yeh, violinista clássico nascido na cidade de Taipei, Taiwan, mas fixado em Cincinnati, OH, EUA. O projeto nasceu há mais de quinze anos, e os primeiros lançamentos foram em K7 e CD-R pela DroneDisco, selo do próprio Yeh. Desde então, o BxC se firmou como um dos nomes mais prolíficos da cena underground americana, voltada para músicas experimentais, como o noise, drone, improv e composição eletroacústica. The Very Heart of the World é o segundo álbum oficial e um de seus trabalhos mais aclamados pela crítica até hoje. Participam do disco os membros do Hair Police, Trevor Tremaine, Robert Beatty e Mike Connelly (este último também do Wolf Eyes). Paralelamente, Spencer Yeh mantém carreiras solo e colaborativa com músicos de respeito, além de outros projetos menores. Este ano já soma dez lançamentos com seu nome, entre os quais, Cincinnati, um duo com John Wiese. (TF)

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Na música do Burning Star Core, existe uma linha muito tênue entre composição e improvisação. Alguns dizem que certos álbuns foram compostos, já outros preferem arrolar os métodos musicais de C Spencer Yeh ao improviso. Nesse sentido, The Very Heart of the World deixa mais dúvidas do que asserções. Considerando o desenvolvimento e a estruturas das músicas de TVHOTW, é possível dizer que, em grande parte, as sessões parecem totalmente espontâneas, tamanha é a confluência de sons, camadas e instrumentos utilizados. Mas o que dizer de “Benjamin”, por exemplo, que é dominada por um drone, enquanto outros drones subjacentes vão mudando de textura até chegarem num final calmo, quase premeditado? Não estaria Spencer Yeh compondo à maneira de La Monte Young ou Tony Conrad?

“Nyarlathotep”, a segunda faixa, também não estaria muito longe de uma composição, se pensarmos na sua sequência veloz de sons e nos tipos de timbres utilizados, que lembram uma composição de Stockhausen. A variedade rica de notas e a ampla gama de consoantes ditas pelas vozes também fazem transparecer um certo método por trás da sua estrutura, que se não é milimetricamente pensada, é incrivelmente precisa na sua aleatoriedade. Talvez a terceira, “Catapults”, com sua bateria incerta e um aspecto de construção e desenvolvimento notavelmente mais selvagem que o resto do disco, seja a única na qual a improvisação tenha preponderância, embora, do início ao fim, haja a presença de um drone firme e indelével.

“Come Back Through Me”, a quarta e última faixa, que ocupa todo o lado B do vinil, é o eixo central da discussão acerca de The Very Heart of the World: é perceptível com clareza que sua primeira metade é composta, já que há apenas uma única variação rítmica, com os mesmos instrumentos, mudando somente a intensidade destes. Em dado momento, acontece uma ruptura brusca e tudo se torna mais inconstante: nenhum instrumento segue um padrão rítmico regular e vários ruídos aparecem e desaparecem, subitamente. É como se a música fosse dividida em duas partes: a primeira, composta e a segunda, improvisada.

Se The Very Heart of the World é composição ou improvisação, no fundo, não importa tanto (a não ser para caducar o velho dilema de que os dois essencialmente se opõem). De qualquer modo, estamos diante de um trabalho feito com muita diligência, tanto em relação aos timbres e texturas utilizados, quanto à própria forma da música – TVHOTW é a evolução da música noise e experimental preconizada pelos vanguardistas do século XX. Ao lidar com os avanços que os sons eletrônicos inseriram na música moderna e, ao mesmo tempo, com formas pré-linguísticas (a exemplo de “Nyarlathoep”) da comunicação humana, Spencer Yeh fez mais que um disco notável: concebeu e executou uma das obras mais instigantes dessa década. (Thiago Filardi)

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C. Spencer Yeh é uma figura interessante. Como típico representante do noise/drone americano, grava sem parar seja em carreira solo seja em inúmeras colaborações. Até aí nenhum problema. O noise não é o primeiro gênero em que é comum artistas lançarem mais de meia dúzia de discos por ano – o jazz está aí para não me deixar mentir. Como o jazz, o noise se articula através de vetores como vibração, energia, vivacidade, explosão de vitalidade. É uma pulsação vital, e é nesse momento que a espontaneidade aparece como poder de pujança, como uma amostra de liberdade criadora. Pegue um disco de Merzbow: ele pode ir para qualquer lugar a partir do que ele está fazendo, e do ponto de vista da audição pouco importa mensurá-la em termos diacrônicos, ou seja, compreender suas criações como “composições”, observar estrutura, progressão, essas coisas. O que importa é o que acontece no presente. E o presente é intensidade. Há artistas noise que desenvolvem outro tipo de relação com a ideia de composição, mas parece impossível ao gênero articular um tipo de obra em que o diacrônico fosse mais perceptível que o momentâneo, pelo simples motivo que a partir do momento em que o espectador conseguisse se situar confortavelmente na gama de sons recebida, o poder do barulho já se dissolveria em algo diluído, em algo não-desafiador.

The Very Heart of the World flerta com o perigo. Não que seja pouco intenso ou diluído, longe disso. C. Spencer Yeh tem uns barulhinhos prá lá de intrigantes, saídos de seu violino ou processados a partir de outros instrumentos. O perigo diz respeito justamente à ideia de espontaneidade, e como aquilo que se espera dela se confronta com o que se espera de composição. Uma faixa como “Nyarliathotep”, por exemplo, fica absolutamente no meio do caminho de um tipo de música – fragmentos improvisados ou processados de vocalização – que, mesmo não sendo prolífica hoje, tem representantes significativos. Ora, se compararmos a minúcia dessa faixa com a minúcia de uma Maja Ratjke ou de um Asa-Chang & Junray em seus trabalhos sobre voz humana, Spencer Yeh toma uma saraivada; se, do outro lado do espectro, compararmos em termos de inventividade vocal espontânea com um Keiji Haino ou Seijiro Murayama, a coisa também não vai bem para CSY; ou seja, ele está no meio do caminho.

Outro aspecto que mostra bem que C. Spencer Yeh ainda tem um bom caminho a percorrer: cada faixa faz uma coisa, aponta para uma direção diferente, sem apontar uma verve sistemática. Além disso, o objetivo das faixas parece ser o de simplesmente chegar a um padrão de som particular, geralmente fazendo uso de drones cheios que criam um ambiente carregado e demoníaco. Mas, ao contrário dos ataques que faz em seu violino, seus drones não têm grande singularidade, nem um grande poder evocativo (ao contrário, por exemplo, de William Fowler Collins) além de um sentimento bem geral de “doom”, certamente recompensador na audição, mas sem destaque maior no meio de um conjunto (empalidece, por exemplo, na comparação com o recém lançado Shall I Download a Blackhole and Offer It to You, do Pan Sonic junto com Keiji Haino). No fim das contas, The Very Heart of the World parte de ideias muito interessantes, mas não as trabalha ao ponto de criar uma composição de destaque, nem as converte em força bruta incandescente do jazz e do noise mais feérico. Pode-se dizer que o meio do caminho encontrado por C. Spencer Yeh é interessante. Certamente o é. Mas ainda falta o toque de brilho que separa os singularmente grandes dos investigadores talentosos. (Ruy Gardnier)

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C. Spencer Yeh é um artista que trabalha na “fronteira”: seja na fronteira entre universos que, não sei porque cargas d’água, mantém uma relativa autonomia, o erudito e o popular; na fronteira entre a composição e a improvisação; entre o grosseiro e o rebuscado; e mesmo entre a música e o barulho – seja lá o que isso queira dizer. Sujeitos como ele já tiveram maiores dificuldades, tanto para divulgar seu trabalho, como para adquirir aderência entre um público cativo e interessado. Mas o fato é que atualmente a profissão de fé de artistas como C. Spencer Yeh, o trabalho na fronteira, se tornou algo mais que comum. Seja na prática de uma música que incorpora o caráter híbrido e auto-referencial da cultura contemporânea, seja na própria adesão ao amplo espectro de sonoridades que vigoram nos quatro cantos do planeta, a música hoje se expande vertical e horizontalmente, cabendo ao crítico identificar o papel local e o global da expressão artística. C. Spencer Yeh reside portanto nessa dimensão de fronteira da música atual. Mas, de um modo geral, seu trabalho padece de uma certa impessoalidade, o que neste contexto pode ser fatal. Especificamente em seu segundo álbum,The Very Heart Of The World, Yeah deixa esta falta quase que tomar conta do álbum, visto que somente a primeira faixa, “Benjamin”, e a terceira, “Catapults”, depreendem uma personalidade mais forte e afirmativa. O problema é que em 2005 já existiam uma série de trabalhos que operavam na seara do noise, da música improvisada, do drone e outras “músicas difíceis” com muito mais personalidade e contundência do que este The Very Heart Of The World. Uma certa gratuidade marca diversos momentos do álbum, sobretudo da enfastiante última faixa. E mesmo quando parece que o sujeito vai engrenar uma série de timbres diferenciados, sobretudo a partir da manipulação de instrumentos acústicos, a coisa desanda em uma barulheira sem viço… Mal comparando, acho que o Venetian Snares se sai bem melhor, neste aspecto. The Very Heart of the World não é exatamente um disco ruim, mas um disco um tanto quanto sem graça. Sobretudo se compararmos o alcance do álbum com sua repercussão exagerada. (Bernardo Oliveira)

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