Edição e texto: Amanda Miranda, Dairan Paul e Ricardo Torres
Fotos: Dairan Paul

O objETHOS dá continuidade a sua série de entrevistas com Gisele Reginato (UFGRS) para discutir questões éticas no jornalismo. Se você perdeu as postagens anteriores, leia também as conversas com Danilo Rothberg (Unesp) e Leonardo Foletto (UFRGS). Todas as entrevistas foram realizadas durante a 14ª SBPJor, na Unisul (Palhoça/SC), em novembro.

Reginato defendeu no começo do ano sua tese de doutorado intitulada “As finalidades do jornalismo: o que dizem veículos, jornalistas e leitores”. A análise da autora mapeou percepções dos três grupos em relação ao papel da atividade jornalística. Ao final do trabalho, Reginato propõe 12 finalidades a serem cumpridas pelo jornalismo, que vão desde a investigação, interpretação e verificação, até o registro da história e construção da memória.

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Na conversa a seguir, a pesquisadora comenta os resultados de sua tese de doutorado, além de discutir a imagem do leitor formada pelo jornalismo e a atuação do leitor real, que critica as práticas jornalísticas. Confira:

objETHOS: Sua pesquisa de doutorado apresenta as finalidades do jornalismo a partir da percepção dos veículos, jornalistas e leitores. Para qual dessas finalidades há um maior descompasso na compreensão dos três grupos?

Gisele Reginato: Os sujeitos que pesquisei são os três jornais de referência brasileiros, que acabam endossando muito o imaginário sobre jornalistas; 85 jornalistas de diferentes veículos, ou alternativos, ou de referência, e 250 leitores que estão comentando nas redes sociais. Entre as principais finalidades, há uma percepção muito parecida do que é jornalismo: de que ele tem de esclarecer a população e apresentar pluralidade, fiscalizar o poder, fortalecer a democracia e informar. Nesses casos a gente vê um imaginário bastante consolidado. Mas apesar dessa uniformidade, há diferenças bastante significativas. Eu destacaria, por exemplo, a questão de verificar a veracidade das informações. Ela fica em quarto entre leitores e jornalistas, e é a última finalidade para os veículos. Acho muito sintomático que os principais jornais de referência, que acabam pautando a compreensão de jornalismo para jornais menores, não considerem a verificação da veracidade como algo importante para destacarem no discurso institucional.

Também tem outras distinções na percepção dos sujeitos: a de selecionar o que é relevante, que aparece no discurso dos veículos e dos leitores, mas não aparece no discurso dos jornalistas. Os jornalistas focam muito mais no seu papel enquanto verificadores da informação e não como selecionadores, talvez porque essa seleção seja mais subjetiva e editorial mesmo.

Na teoria a gente fala tanto sobre as alterações tecnológicas, mas para os leitores isso é praticamente indiferente. Os leitores estão preocupados que os veículos cumpram seu papel, independente de estar no impresso, no Twitter, Facebook ou numa plataforma nova que surgir. Outra questão é a investigação como um papel do jornalismo. Isso é muito mais importante para leitores do que para veículos e jornalistas. Claro que os veículos destacam que têm que fiscalizar o poder, mas é sintomático que não apareça a investigação como algo muito forte para eles.

Eu trabalho mais na minha tese com esse dever-ser, com o que o jornalismo deveria fazer, mas eu acho que esses indicativos ajudam a gente a tirar disso uma base para avaliar o que está sendo feito hoje. Num momento em que os veículos não acham que a verificação da veracidade seja importante, que a investigação seja importante, então que jornalismo é esse que a gente está buscando fazer?

objETHOS: Nos resultados da sua pesquisa, você aponta que os leitores têm uma percepção nítida das finalidades do jornalismo em diversos momentos. Você acha que o discurso dos veículos parece subestimar, em alguma medida, a compreensão que os leitores têm do jornalismo?

Reginato: Acho que entender o discurso dos leitores é uma demanda nos estudos em jornalismo e foi uma das minhas grandes curiosidades na tese. O que destaco é que tanto os veículos quanto os jornalistas guiam a construção discursiva deles para o leitor. Então eles dizem muito “é para você, leitor, que a gente existe”, “tudo só faz sentido se formos úteis para o leitor”, “temos que mostrar que o mundo é plural para que o leitor forme a sua opinião”. Discursivamente, é dado um espaço considerável a esses leitores, mas no dia a dia a gente não vê uma conversação entre eles e os veículos. Fala-se muito de jornalismo colaborativo, por exemplo, mas os leitores comentam no Facebook e não são respondidos. Não se tem essa preocupação. Então eu acho que em alguma medida, discursivamente, os veículos e os jornalistas falam bastante da importância do leitor, mas na prática se menospreza, se minimiza essa importância.

Um dos resultados da tese foi pensar que o leitor sabe mais de jornalismo do que a gente pressupunha. Na academia, temos uma distinção teórica entre o leitor real – aquele que lê – e o leitor imaginado – para quem se constrói o discurso. Acho que muitas vezes os veículos e jornalistas estão preocupados com a imagem do leitor que eles fizeram, mas aí o leitor real vai lá e diz coisas que contrapõem [essa imagem].

Em outro artigo, escrevi sobre os vínculos que o leitor mantém com o jornalismo. O que a gente vê é que, às vezes, o leitor real demonstra que não é o leitor imaginado, mas os veículos continuam falando para esses que eles imaginam que é o leitor.

No final da minha pesquisa de doutorado, encontrei um trabalho recente publicado na Holanda sobre o que o público de lá esperava do jornalismo. Eles falavam exatamente isso que eu estava encontrando: os leitores sabiam muito mais sobre jornalismo do que se pressupunha. E aí nós vemos comentários que questionam fontes em off, os métodos de apuração do jornalista, se aquilo é publicidade. Os leitores reconhecem aquilo que define o gênero como jornalístico, e que o distingue do romance e da ficção. Eles estão atrelados a um contrato de comunicação e discutem isso. Então eu acho que sim, talvez o papel do leitor seja um pouco menosprezado, até porque temos muitos espaços de manifestações e nada se faz com esses leitores que tentam algum tipo de discussão. Claro que em todos os comentários nós vamos encontrar pessoas dizendo que são contra o PT, por exemplo, ou que criticam um título sem ler o restante da matéria. Mas os números que encontrei na tese me parecem representativos, de modo que a gente pode dizer que sim, há leitores que sabem o que é jornalismo. E nós, enquanto jornalistas, acadêmicos e pesquisadores, não sabemos o que fazer com isso, com esses leitores que realmente estão interessados, criticam e são vigilantes do jornalismo. Acho que isso é um desafio, tanto para a atividade profissional quanto para a pesquisa.

objETHOS: Qual é o grande conflito ou dilema ético que o jornalismo enfrenta na contemporaneidade?

Reginato: Uma questão muito forte é o papel que o jornalismo tem de apresentar um mundo mais complexo, plural e diverso. Esse é um grande desafio e uma finalidade importante do jornalismo. Muitas pesquisas tratam do papel do jornalismo na sociedade, mas para que serve o jornalismo? Que jornalismo é esse? Muitas pautas têm várias fontes, mas elas são monofônicas, todas têm o mesmo ponto de vista. Talvez pelos constrangimentos organizacionais, a falta de tempo e por toda a estrutura jornalística a gente não preste atenção nisso. Isso está atrelado à qualidade da informação jornalística. Hoje o jornalismo tem um papel que é potencializado e que só ele pode ocupar na sociedade. Podemos dizer que ele não está cumprindo ou que está cumprindo [esse papel] apenas em algumas pautas, mas é isso que vai fazer ele não deixar de ser jornalismo. Existem vários dilemas éticos, pois os jornalistas estão atuando em muitos lugares diferentes. Cada sujeito, dependendo do seu lugar de fala, tem um desafio diferente. Entretanto, o desafio geral é mostrar a pluralidade do mundo. Esse é um dos grandes problemas e um dos motivos ligados ao surgimento de veículos alternativos – existe um público querendo ver outros pontos de vista que sejam mais plurais.

objETHOS: Como a pesquisa em jornalismo pode ajudar a repensar esse dilema?

Reginato: A pesquisa é fundamental. Em alguma medida, ela deve chegar até os profissionais e na sala de aula. Existe uma separação entre academia e prática, mas cada vez mais profissionais do mercado estão buscando reflexões e se interessando pela produção acadêmica. Especialmente para docência a pesquisa é importante, porque seus dados e reflexões promovem avanços. A essência da pesquisa está relacionada a esses avanços que partem de tudo o que já foi feito. Por isso o estado da arte também é fundamental. Pensando pesquisa dessa forma, como uma rede em que as pessoas estão construindo um conhecimento juntas, que vão somando, eu vejo muitos pontos positivos. Seria muito problemático não conseguir avançar em termos de pesquisa. Se não tivéssemos esses espaços de discussão, que têm um tempo diferente do jornalismo e da docência, não teríamos essa construção, que é necessária. Em função das pesquisas, temos uma bagagem para se colocar no mercado. Em relação à docência, as pesquisas fornecem a bagagem para mostrar aos alunos o que está acontecendo na atualidade. Em alguma medida temos que demonstrar os limites, mas também mostrar as potencialidades. A pesquisa oportuniza isso, a partir de experiências distintas podemos pensar várias coisas que estão sendo articuladas e direcioná-las para a sala de aula. Esse é o grande lugar para mostrar essas potencialidades. Nenhum campo consegue se fortalecer sem pesquisa. A qualidade dos jornalistas que a sociedade vai ter no futuro é totalmente dependente do nível de qualidade e dos avanços da pesquisa em jornalismo.

objETHOS: Você acha que as redações, tal como as concebíamos no início do século, estão preparadas para esses desafios?

Reginato: Essa é outra grande questão: o modelo de negócio do jornalismo. As redações estão defasadas nesse sentido, não se tem a percepção das redes e das complexificações que elas apresentam. Atualmente, o número de profissionais está sendo reduzido ao invés de aumentar-se a qualificação que os jornalistas necessitam para ocupar os espaços proporcionados pelo jornalismo multiplataforma. Não tenho uma resposta pronta, mas acredito que as redações precisam se reinventar para dar conta dos novos desafios impostos pelo jornalismo. Não podemos mais analisar a redação no formato tradicional, os formatos alternativos devem ser considerados. O jornalismo tradicional persiste, há constrangimentos econômicos e as indústrias jornalísticas não estão preocupadas com isso, mas o jornalista enquanto sujeito pode aproveitar as brechas, elas são um refúgio para acreditar nas possibilidades do jornalismo. Em alguma medida o jornalista consegue, na lida diária, desenvolver enfrentamentos e conseguir emplacar pautas importantes e enquadramentos que não podem mais ficar silenciados. Se na estrutura da redação não há espaços, eu acredito no sujeito jornalista, que é aquele que as redações tradicionais não consideram. Possivelmente a grande chave seja a motivação dos jornalistas enquanto sujeitos e a problematização dos fatos.