É uma pena que perdemos a capacidade de nos maravilhar.

Vale em todos os sentidos, desde a experiência de se sentir arrebatar por uma obra de arte até aquele dia em que você olhou uma pessoa e descobriu que ela estava diferente de todos os outros dias. O mundo seria um local bem melhor se todos cedessem às maravilhas do cotidiano e permitissem que o encantamento aflorasse. No entanto, preferem ficar em uma postura impassível, como se tudo o que acontece fosse enfadonho. Como se as maravilhas não existissem.

Quem me conhece sabe que, se existe algo que me une a Montaigne, Freud e Darwin, é a nossa admiração pelos “quartos de maravilhas” ou “gabinetes de curiosidades”. No passado, em especial na época dos Grandes Descobrimentos, as pessoas destinavam um quarto das suas casas para guardar objetos diversos que representavam outras culturas e povos. Para um observador incauto (ou dessa modernidade asséptica em que se prega justamente o exíguo ao contrário da estranheza), poderia se assemelhar a um bando de badulaques reunidos no mesmo local. No entanto, para quem fosse capaz de “ler” os objetos, eles não estavam ali reunidos por uma questão de acumulação, mas por causa das histórias que contavam. Eram pequenos portais abertos para outros mundos. Bastava alguém perguntar o que era um objeto que a história contida nele o transportaria para outro local e tempo.

Gabinete do boticário Ferrante Imperato (1521-1609)
Gabinete do boticário Ferrante Imperato (1521-1609)

Orhan Pamuk escreveu um livro muito interessante, “O Museu da Inocência”, em que a sequência de objetos prosaicos dentro de uma casa contém uma história de amor fragmentada. Todos possuímos um “quarto de maravilhas” particular, representado pelos objetos que adquirimos, mas poucos assumem a ideia de ter maravilhas à solta na sua casa. Ninguém faz como Montaigne, colecionando objetos do Novo Mundo com cada barco que chegava, ou como Darwin, pegando uma lembrança de cada local em que o Beagle aportou.

Às vezes, imagino Freud, Montaigne e Darwin sentados nos seus “quartos de maravilhas” à contraluz, deixando os objetos sussurrarem histórias mágicas. Imagino se eles compartilhavam maravilhas, como se existisse um túnel no tempo e no espaço as unindo. Interrogo-me se Freud, fumando o famoso charuto, olhasse um determinado vaso, poderia ter o mesmo pensamento que Darwin contemplando a  estrutura fossilizada presa em uma rocha ou que Montaigne olhando uma máscara tribal na sua prateleira. As maravilhas estão interligadas, tudo depende do quão longe se consegue caminhar dentro do sonho dos objetos.

Ontem, tive uma uma agradável surpresa ao descobrir que os “quartos de maravilhas” também existem nas pinturas. Sempre fui atraído por pinturas enciclopédicas, como galerias de arte ou bibliotecas, em que uma série de objetos e cenas eram retratados.

O quadro que me revelou esta transposição do conceito de maravilhas reunidas dentro de uma sala para o interior de uma pintura foi “Alegoria da Visão”, pintado entre 1616 e 1617 como parte de uma série de cinco pinturas intitulada “Os Cinco Sentidos”. A obra foi feita em conjunto por Jan Brueghel o Velho e Peter Paul Rubens.

"Alegoria da Visão", Jan Brueghel o Velho e Rubens
“Alegoria da Visão”, Jan Brueghel o Velho e Rubens

À primeira vista, parece uma sala cheia de objetos em que uma mulher e uma criança conversam. No entanto, submergindo nos detalhes, as maravilhas surgem: a mulher é Vênus, a Deusa da Beleza, e a criança é Cupido, seu filho e Deus do Amor. O quadro que Cupido mostra para a mãe é “A cura de um homem cego”. Aos seus pés, uma luneta; ao fundo, um astrolábio e, no meio, um globo terrestre.  Atrás de Vênus, um quadro mostra o arquiduque Albert e sua esposa Isabella, proprietários da coleção imaginária. Um tapete persa revela a riqueza do Arquiduque. Na direita, um corredor revela a existência de outras artes que não estão representadas na pintura, deixando entrever que ela é somente parte de um todo muito maior. A porta aberta ao fundo revela um jardim e o Palácio de Maremont, revelando detalhes arquitetônicos. Alguns dos quadros de Rubens estão representados no interior da pintura, assim como os bustos revelam admirações filosóficas e políticas onde se misturam – provavelmente – as ideias do Arquiduque com as dos pintores.

Os detalhes que descobri são apenas detalhes, pois a pintura se abre para um infinito de maravilhas e possibilidades entremeadas. Existem muitas histórias concentradas em somente um local, e mergulhar nelas pode ser inebriante.

No entanto, a maior de todas as maravilhas não está no quadro, e sim no seu silêncio.

“Alegoria da Visão” é uma obra única desenhada por dois grandes pintores. Analisando o estilo, podemos ficar satisfeitos ao constatar que Rubens desenhou as figuras humanas e Brueghel desenhou todo o resto. No entanto, ninguém será capaz de imaginar as conversas que os dois pintores tiveram no atelier, a forma cuidadosa com que dispuseram cada parte do desenho a fim de que entrasse no quadro, as discussões políticas e posicionamentos filosóficos que desejavam transmitir para o mundo. Não sabemos sequer se o Arquiduque deu ideias ou se os dois pintores, agindo com saudável transgressão, não colocaram diminutos pontos irônicos e símbolos que somente eles entenderiam. A obra pode conter a semente da destruição dos próprios conceitos, e nós nem suspeitamos.

Não podemos nem sonhar se eles discutiram, se brigaram, se ficaram sem se falar ou se cada um completava a arte do outro ao natural, como se fossem parte do mesmo espírito criador. Não sabemos se um pintor improvisava e o outro corrigia, se a respiração do primeiro desconcentrava o outro, se eles conseguiam ver – nas sombras da sua imaginação – o mesmo quadro. Eu consigo conceber Michelangelo olhando o “Moisés” escondido dentro da pedra. Contudo, não imagino como duas pessoas possam estar diante de uma tela em branco e ver a mesma obra inexistente.

A maior maravilha do quadro é que só podemos imaginar como ele foi feito e, mesmo se acertarmos, ainda assim nunca teremos certeza. Talvez esta seja a maior lição de um “quarto de maravilhas”: o mais incrível não são os objetos que estão no seu interior, e sim a pessoa que os reuniu e viu o mundo através deles.

Quando qualquer pessoa une uma série de objetos em uma parede ou prateleira, ela também faz um “quarto de maravilhas”. Perdemos a capacidade de nos maravilhar conosco mesmo, mas não abandonamos o sonho de que cada item possui a sua própria magia – esquecendo-nos de que a maravilha está mesmo é no olho do colecionador, e não no tamanho da sua coleção.

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