Ano VII

Ninfomaníaca

sexta-feira jan 24, 2014

Ninfomaníaca – Parte 1 (Nymphomaniac: Volume 1, 2013) de Lars Von Trier

Os que esperavam encontrar em Ninfomaníaca um filme pornográfico, chancelado “artisticamente” por Lars Von Trier (expectativa que as polêmicas marqueteiras que sondaram a produção do filme ajudaram a construir), de fato se equivocaram. Trier parte da trajetória de uma ninfomaníaca para, supostamente, explorar algumas questões morais que assolam a existência humana.

Joe (Charlotte Gainsbourg), uma ninfomaníaca, é encontrada toda machucada, na rua, por Seligman (Stellan Skarsgård), um pacato homem que a leva para sua casa. Lá, após a insistência de Seligman, a moça resolve contar sua história. Desde o princípio ela afirma não ser uma pessoa boa, ao que Seligman retruca não acreditar. Joe não se enxerga como uma boa pessoa por reter o conceito de pecado, o único elo que mantém com a religião, como observa, e a questiona a respeito, Seligman. Em outra sequência, já mais ao final, Joe relata suas andanças diárias por um parque e compara sua existência a de um leão enjaulado (o que é acompanhado pela inserção de um trecho no qual vemos um leão circulando em sua jaula, recurso repetido em diversas vezes durante as ocorrências das várias metáforas que permeiam o filme), que circula pelo restrito espaço que lhe é reservado, somente a espera da morte, sem realmente enxergar algum significado na vida.

Eis a síntese, nesses dois momentos, da problemática moral que Trier busca trazer à baila através de sua personagem: uma visão niilista da existência em confronto com uma dinâmica de convivência em sociedade, ou seja, como encarar moralmente os efeitos que tal visão filosófica provoca sobre o outro (algo escancarado na sequência com a personagem de Uma Thurman). Nesse sentido, a compulsão desenfreada por sexo seria a encarnação trágica dessa problemática: Joe satisfaz sua compulsão quase que mecanicamente, e não vê nenhum sentido na vida para além disso, contudo, se sente culpada por afetar tão profundamente a vida de outros.  A questão é que o abismo trágico insinuado por Trier esbarra em uma espécie de negociação cínica em torno da própria problemática moral que visa colocar.

Desde o início, o encontro entre Joe e Seligman possui uma estrutura quase fabular: dois estranhos, quase que opostos, se encontram e ao contar sua história Joe se utiliza de metáforas, que surgem a partir de vários objetos, os quais encontram no quarto de Seligman. Inunda-se a tela com diversas imagens ilustrativas de tais metáforas – como o tal leão já citado e as diversas imagens de pesca no início. Há uma dimensão evidentemente humorística e um tom de comentador na narrativa de Trier. Suas imagens passam então a ilustrar esse abismo que se anuncia a partir da problemática moral sugerida, mas ao mesmo tempo não oferecem perigo algum, uma vez que se navega em águas calmas, tranquilizadas a partir do cinismo que comenta e alivia, do cinismo publicitário, hiperconsciente e controlador, que anuncia a tragédia mas recua um passo antes, para poder refestelar-se com a funcionalidade de seu anúncio – a face marqueteira de Trier se impondo como nunca.

Seja na sequência em que Joe se encontra com o pai moribundo – e na qual vai se atacar justamente o único vínculo afetivo verdadeiro até então estabelecido por ela – seja na sequência final, em que Joe faz um paralelo entre sua vida sexual e a polifonia na música de Bach – e sua respectiva imagem final, a que fecha essa primeira parte, na qual Joe vislumbra uma impotência de vida fora de sua compulsão mecânica – o que se observa é o cinismo comentando e se dobrando sobre a própria imagem. Trier nunca se aviltou em se colocar na posição de franco manipulador (o processo hipnótico como dado fundamental em seus primeiros filmes e a revisão do melodrama e do musical em Dançando no escuro são exemplos claros). Contudo, sua manipulação em Ninfomaníaca parece vir no sentido de comentar sua própria “audácia” em tratar de temas polêmicos; suas imagens surgem quase como ícones de um filme que vislumbra seu valor ao supostamente colocar questões morais, mas que no fundo se compraz com o reconhecimento de tal intenção, através do cinismo que comenta e se derrama sobre as imagens.

Ninfomaníaca não é um filme pornográfico chancelado artisticamente, mas quase uma peça publicitária confundida com cinema por, supostamente, nos defrontar com algumas questões morais, prontamente esquecidas e esmaecidas em prol de uma conciliação cínica. E isso parece estar cada vez mais em sintonia com a agenda conservadora do dito “circuito de arte” dos cinemas, uma vez que enquanto Ninfomaníaca trilha sua carreira, um filme que verdadeiramente coloca questões morais, sem qualquer conciliação cínica, como A garota de lugar nenhum, de Jean-Claude Brisseau, não é sequer lançado.

Guilherme Savioli

 

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