• Por Um Mundo Onde A Falta De Centímetros Da  Minha Saia Não Seja Proporcional Ao Seu Abuso
  • Por Um Mundo Onde A Falta De Centímetros Da


    Minha Saia Não Seja Proporcional Ao Seu Abuso


    Sabe aquela máxima que diz que é melhor ouvir merda do que ser surdo? Eu, como não sou uma pessoa lá muito resignada, acho que o ideal seria a gente gozar da plena saúde auditiva e mesmo assim não ser obrigado a ouvir nada que saísse do espectro do “bom dia, moça bonita”, “vamos morar no Rio de Janeiro?”, “eu gosto de você”, “amanhã é feriado”, “vou te dar um aumento” e “a festa é open bar”. Mas vira e mexe, quando estou desacompanhada dos fones de ouvido, meus mais fiéis companheiros de cama, mesa e caminhada,vejo que a coisa mais sensata que posso fazer é me apegar ao ditado. Na semana passada eu estava andando na rua sem fones de ouvido, como uma subcelebridade da Internet que sou. Um carro parou ao meu lado. O motorista fez uma cara de desejo e começou a aplaudir. Aqueles aplausos fortes e espaçados, como a gente faz quando está desdenhando de alguma coisa. Num primeiro momento, me assustei com o estampido. E então, quando ele já tinha acelerado, eu consegui reagir e gritar algo como “o que é isso, seu escroto?!”. E fiquei pensando no que teria sido aquilo. Até agora não entendi, mas presumo que, se fosse possível, era com o pau que ele teria batido aquelas palmas.

    Essa seria a deixa perfeita pra eu entrar no já batido assunto da pesquisa Chega de Fiu Fiu, desenvolvida pelo blog Think Olga, e condenar os métodos nojentos que alguns homens ainda usam para chamar a atenção ou ~valorizar~, sob o ponto de vista deles, uma mulher. Mas meu apelo, desta vez, não vai aos repressores. A eles, apenas dois desejos: que nos respeitem e que vossos paus não voltem ao tamanho normal depois da contração típica dos dias frios de inverno. Hoje, quero conversar com as vítimas. Com cada uma de nós que anda apressada pelas esquinas da cidade todas as noites, carregando dois medos: o de ser assaltada e o de ser sexualmente abusada. Com cada uma de nós que aprendeu a tirar um pouco do excesso do batom novo depois de ouvir comentários inapropriados de colegas de trabalho – como “queria essa boca em outro lugar”. Com cada uma de nós que já presenciou um desconhecido qualquer colocar o pau pra fora e bater uma no ponto de ônibus, nos olhando de cima a baixo como reles objetos de desejo. Com cada uma de nós que já precisou provar a capacidade intelectual somente por ter nascido mulher, sem a ~dádiva~ do cromossomo Y e de um par de bagos no meio das pernas.

    De todos os dados destacados na pesquisa Chega de Fiu Fiu, o que mais me assustou foi um que, talvez, tenha passado batido por vocês. Provavelmente porque um consenso se espalhou indevidamente por aí: o de que a saia curta da mulher justifica olhares agressivos, comentários maldosos (inclusive partindo de outras mulheres) e até passadas de mão no transporte público. Quando perguntadas se já haviam trocado a roupa antes de sair de casa com medo do possível assédio que enfrentariam, 90% das mulheres afirmaram que sim, já se privaram da própria liberdade de escolha por medo. NOVENTA POR CENTO. Algumas aconselhadas pelas próprias mães, tenho certeza – isso não é roupa pra pegar ônibus –; outras pela própria consciência – afinal, quantas vezes você, mulher feminista e bem resolvida, já não desmereceu uma Panicat pelo comprimento da saia e pelo tamanho do decote dela? E apesar de eu também temer o assédio, o único algoz que me faz mudar de roupa antes de sair de casa é o Climatempo.

    Num primeiro momento, pode parecer simples e inofensiva essa história de trocar de roupa para evitar constrangimentos. Mas no fundo, ela é inadmissível, porque é uma forma de culpabilizar a vítima e de perpetuar o pensamento de que, se ela foi abusada, é porque não se deu ao respeito. Ou estava bêbada, ou dançando até o chão, ou andando sozinha na rua à noite – coisa que mulher que se preze, definitivamente, não faz. É um mecanismo repressor, assim como o advento dos vagões femininos em metrôs e trens das grandes capitais. Será mesmo que o certo é cercear a liberdade da vítima? É instigar ainda mais uma infantil guerra dos sexos, promovendo um apartheid de gêneros? Obviamente que não. Por mais clichê e demagogo que isto soe, o segredo está numa educação menos machista e na conscientização popular de que não, as mulheres não vieram ao mundo para suprir os desejos masculinos.

    Até quando continuaremos a moldar nossos comportamentos com base na postura agressiva de quem nos reprime? No Brasil Colonial, os senhores de engenho obrigavam os escravos a se recolherem às senzalas, sob a pena de irem para o tronco. Na época de nossos avós, os professores obrigavam os canhotos a escreverem com a mão direita, sob a pena de apanharem de palmatória. No auge da ditadura, a censura obrigava centenas de Chicos e Caetanos a mudarem as letras de suas músicas, sob a pena de serem exilados ou torturados. E nos dias de hoje, o patriarcalismo obriga as mulheres a se suprimirem os direitos sobre o próprio corpo, sob a pena de serem abusadas. O que há em comum em todos esses exemplos, respeitando as devidas proporções? A total inocência das vítimas. Portanto, não há nada de errado com a sua minissaia, moça. Muito menos com o seu decote. O que está errado é o comportamento de quem se sente no direito de violá-la por causa disso.

    E você jura que ainda acha que o pior tormento da vida de uma mulher é menstruar uma vez por mês?


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