O enigma de Reigate

Arthur Conan Doyle

O enigma de Reigate

Título original: The Reigate Puzzle
Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,
em Junho de 1893 e com 6 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:
Este texto digital reproduz a
tradução de The Reigate Puzzle publicado em
As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume III,
editado pelo Círculo do Livro
e com tradução de Hamílcar de Garcia.

O que narro a seguir aconteceu um pouco antes de o meu amigo Sherlock Holmes ter-se restabelecido de uma enfermidade causada pêlos enormes esforços despendidos na primavera de 1887. Constituiria assunto apropriado a esta série de esboços a questão da Netherland-Sumatra Company e dos colossais projetos do barão Maupertuis, mas está tão recente na mente do público e tão intimamente relacionada com a política e as finanças que é melhor deixá-la de lado. No entanto, ainda que de um modo muito indireto, ela conduz a um problema complexo e singular, que deu a meu amigo uma oportunidade de demonstrar o valor de uma arma nova entre as muitas com que sustentou batalhas contra o crime ao longo da vida.

Recorrendo a minhas notas, verifico que foi no dia 14 de abril que recebi um telegrama de Lyon, na França, informando-me de que Holmes se encontrava doente, na cama, no Hotel Dulong. Vinte e quatro horas depois, eu estava no quarto do doente. Fiquei logo aliviado ao verificar que não havia nada de grave nos sintomas que apresentava. Porém, sua constituição de ferro cedera sob o esforço da investigação que se arrastara durante dois meses. Durante esse período nunca trabalhara menos de quinze horas por dia, e mais de uma vez, segundo me assegurou, ficou preso à sua tarefa por cinco dias ininterruptos. O resultado triunfante de seus labores não pôde salvá-lo da reação a tão terrível esforço. Quando toda a Europa repetia seu nome e seu quarto estava literalmente atulhado de telegramas de congratulações, encontrei-o dominado pela mais terrível depressão. Até o reconhecimento de que havia triunfado onde a polícia de três países fracassara, e de que excedera largamente em manobras o mais refinado trapaceiro da Europa, não foi suficiente para fazê-lo reagir contra aquela prostração nervosa.

Três dias depois estávamos de volta à Baker Street. Era evidente, porém, que meu amigo melhoraria muito com uma mudança de clima. E para mim a idéia de uma semana de primavera no interior era aliciante. Meu velho amigo, o coronel Hayter, que esteve entregue a meus cuidados profissionais no Afeganistão, e que arranjara uma casa perto de Reigate, no Surrey, convidara-me com freqüência para que lhe fizesse uma visita. Acrescentara, da última vez, que, se meu amigo me quisesse acompanhar, teria também o maior prazer em recebê-lo. Não obstante, foi necessário um pouco de diplomacia. Quando Holmes soube que a casa era de solteiro, e que lhe seria permitida plena e inteira liberdade, concordou com meus planos e, uma semana depois de nosso regresso de Lyon, estávamos em casa do coronel. Hayter era um excelente veterano, de fino trato e que correra mundo. Descobriu logo, como era de esperar, que Holmes e ele tinham muita coisa em comum.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

Na noite da nossa chegada, após o jantar, sentamo-nos na sala de armas do coronel. Holmes estirou-se no sofá. Eu e Hayter examinávamos seu pequeno arsenal.

— A propósito — disse-me ele de repente —, vou levar uma dessas pistolas lá para cima, para a hipótese de um alarme.

— Um alarme! — exclamei eu.

— Sim, levamos um susto nesta zona recentemente. O velho Acton, que é um dos magnatas de nosso condado, teve a casa arrombada na última segunda-feira. Não houve nenhum grande prejuízo, mas os gatunos ainda andam à solta.

— Nenhum indício? — perguntou Holmes, olhando de soslaio para o coronel.

— Nenhum até agora. Mas o caso é muito insignificante. Um pequeno crime de província. Aliás, muito pequeno para merecer sua atenção, Sr. Holmes, depois daquele grande caso internacional.

Holmes acenou recusando o elogio, embora seu sorriso mostrasse que ele lhe agradara.

— Houve alguma coisa de interesse?

— Penso que não. Os ladrões saquearam a biblioteca, e conseguiram muito pouco pelo seu trabalho. Todo o local foi revolvido. As gavetas e os armários foram arrombados, resultando no desaparecimento de um bizarro volume de Homero, traduzido por Pope, dois candelabros de prata, um peso de papéis de marfim, um pequeno barómetro de carvalho e um rolo de barbante.

— Que extraordinária coleção! — exclamei.

— Oh! Evidentemente, eles levaram tudo o que puderam apanhar.

Holmes grunhiu do sofá.

— A polícia do condado precisava ver isso — disse ele. — Ora essa, é evidente, sem dúvida alguma, que…

Mas eu levantei o dedo em sinal de advertência:

— Meu caro, você está aqui para descansar. Pelo amor de Deus, não se envolva com outro problema quando tem os nervos em fiapos.

Holmes encolheu os ombros com um olhar de cômica resignação para o coronel, e a conversação enveredou por caminhos menos perigosos.

Estava escrito, porém, que todo o meu cuidado profissional seria tempo perdido, porque na manhã seguinte o problema foi-nos imposto de maneira tal que se tornou impossível ignorá-lo. E nossa estada na província tomou um rumo que nenhum de nós podia prever. Tomávamos o café matinal quando o mordomo do coronel entrou na sala sem qualquer cerimônia.

— Ouviu as notícias, senhor?! — arfou ele. — Na casa dos Cunninghams, senhor!

— Roubo? — indagou o coronel, com a xícara de café a meio caminho da boca.

— Assassinato!

O coronel assobiou.

— Por Júpiter! Quem morreu? O juiz de paz ou o filho?

— Nenhum deles, senhor. Foi William, o cocheiro. Alvejaram-no no coração, e nunca mais falou.

— Quem o alvejou, então?

— O ladrão, senhor. E depois fugiu como uma bala e desapareceu. Tinha entrado pela janela da copa, quando William se atirou a ele e encontrou a morte na defesa da propriedade do seu patrão.

— A que horas?

— À noite passada, mais ou menos à meia-noite.

— Bem, vamos lá imediatamente — disse o coronel, recomeçando friamente a tomar o desjejum. — É um negócio sujo — acrescentou, quando saiu o mordomo. — O velho Cunningham é o principal fidalgo da região. É uma pessoa muito decente. Isso vai afligi-lo bastante, porque o homem estava a seu serviço há muitos anos, e era um étimo empregado. Evidentemente, deve ser o mesmo tratante que entrou na casa de Acton.

— E roubou aquela coletânea tão estranha? — perguntou Holmes, pensativo.

— Exatamente.

— Hum! Talvez seja o acaso mais simples do mundo; todavia, à primeira vista, é um tanto curioso, não é? Era de esperar que um bando de ladrões, agindo no interior, variasse o cenário de suas operações, e não fizesse dois furtos no mesmo distrito em poucos dias. Quando o senhor falou a noite passada em tomar precauções, lembro-me de que me passou pela cabeça que esta provavelmente seria a última paróquia da Inglaterra a que um ladrão, ou ladrões, voltariam sua atenção; o que mostra que ainda tenho muito o que aprender.

— Deve tratar-se de algum profissional da região — disse o coronel. — Nesse caso, as casas de Acton e de Cunningham eram exatamente as que lhe podiam interessar, pois são as maiores que há por aqui.

— E eles são os mais ricos?

— Devem ser, mas tiveram uma demanda durante alguns anos, o que sugou o sangue a ambos, suponho eu. Parece que o velho Acton tem direito a metade das propriedades de Cunningham, e os advogados agarraram-se a isso com as duas mãos.

— Se o ladrão for daqui, não será difícil dar-lhe caça — disse Holmes com um bocejo. — Está certo, Watson, não tenciono intrometer-me.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— O inspetor Forrester, senhor — anunciou o mordomo, abrindo a porta com ímpeto.

Entrou o oficial, que era jovem, inteligente e de fisionomia viva.

— Bom dia, coronel. Não queria incomodá-lo, mas ouvi dizer que o Sr. Holmes, da Baker Street, está aqui.

O coronel fez um gesto com a mão em direção a meu amigo, e o inspetor fez uma vênia.

— Pensamos que talvez o senhor quisesse intervir.

— O destino está contra você, Watson — disse ele, rindo. — Estávamos conversando sobre o assunto quando o senhor entrou — disse ao inspetor. — Talvez nos possa dar alguns pormenores.

Inclinou-se para trás em sua cadeira, na atitude que lhe era familiar, e então percebi que o caso era sem esperança.

— Não tínhamos nenhum indício no caso de Acton. Mas neste temos uma porção deles para seguir, e não há dúvida de que foi a mesma pessoa que visitou ambas as casas. O homem foi visto.

— Ah!

— Sim, senhor. Mas fugiu como um veado depois do tiro que matou o pobre William Kirwan. O Sr. Cunningham viu-o da janela do quarto, e o Sr. Alec Cunningham viu-o do corredor dos fundos. Faltava um quarto para a meia-noite quando soou o alarme. O Sr. Cunningham acabava de se deitar, e o Sr. Alec, de roupão, fumava uma cachimbada em seu quarto de vestir. Ambos ouviram William, o cocheiro, pedindo socorro. O Sr. Alec desceu correndo para ver o que era. A porta dos fundos estava aberta, e quando chegou ao pé da escada, viu dois homens lutando do lado de fora. Um deles atirou, o outro caiu, e o assassino correu então através do jardim e pulou a cerca. O Sr. Cunningham, olhando pela janela de seu quarto, viu o indivíduo quando este chegava à estrada, mas logo o perdeu de vista. O Sr. Alec abaixou-se para ver se podia prestar auxílio ao moribundo, e entrementes o bandido fugiu. Além do fato de que era um homem de estatura média e vestido de preto, não temos mais nenhum indício pessoal. Estamos, porém, fazendo rigorosas investigações. Se for de fora, nós o descobriremos rapidamente.

— O que William fazia lá? Disse alguma coisa antes de morrer?

— Nem uma palavra. Mora na casa do guarda com sua mãe, e, como era um rapaz muito fiel, supomos que foi à casa com a intenção de ver se tudo ia bem. Como é natural, o caso de Acton pôs todo mundo de sobreaviso. O ladrão acabava de arrombar a porta, pois a fechadura fora forçada, quando William o apanhou.

— William disse alguma coisa à mãe antes de sair?

— Ela é muito velha e surda, e não lhe pudemos arrancar nenhuma informação. O choque deixou-a apatetada. Mais tarde fui informado de que ela nunca foi lúcida. Há, porém, uma circunstância muito importante. Olhem para isto!

E tirou um pedaço de papel rasgado de uma agenda, que alisou sobre o joelho.

— Isto foi encontrado entre o indicador e o polegar do morto. Parece um fragmento rasgado de uma folha grande. O senhor verá que a hora aqui mencionada é a mesma em que o pobre rapaz encontrou a morte. Pode supor-se que o assassino lhe arrebatou o resto da folha, ou ele, ao assassino. Parece tratar-se de um encontro marcado.

Holmes pegou na tira de papel, cujo fac-símile vai aqui reproduzido.

Ilustração original da edição brasileira

Ilustração original da edição brasileira

— Admitindo-se que fosse um encontro combinado — continuou o inspetor —, então deve supor-se que esse William Kirwan, que possuía a reputação de honesto, podia ter ligação com o gatuno. Podia tê-lo encontrado lá, e até auxiliado a arrombar a porta. Depois, podiam ter-se desavindo entre si.

— Este escrito é de extraordinário interesse — disse Holmes, examinando-o com cuidado e concentração. — As águas são muito mais profundas do que pensei. — E meteu a cabeça entre as mãos; o inspetor riu-se do efeito que o caso produzira no famoso especialista londrino. — Sua última observação — disse Holmes no mesmo instante —, quanto à possibilidade de ter havido cumplicidade entre o ladrão e o empregado, e de ser esta uma nota de compromisso entre eles, é uma suposição engenhosa e, aliás, não totalmente impossível. Porém, este escrito começa… — e mergulhou novamente a cabeça entre as mãos, permanecendo por alguns instantes na mais profunda concentração. Quando levantou o rosto, fiquei surpreso ao ver que tinha o rosto corado e os olhos brilhantes como antes de sua doença. Em seguida, levantou-se com toda a sua antiga energia.

— Eu lhe direi! — exclamou. — Gostaria de dar uma rápida olhadela nos pormenores deste caso. Há nele certas coisas que me fascinam extremamente. Se me permitir, coronel, eu o deixarei com meu amigo Watson e irei com o inspetor para verificar o acerto de uma ou duas pequenas fantasias minhas. Estarei novamente com vocês dentro de meia hora.

Passava já de hora e meia quando o inspetor voltou sozinho.

— O Sr. Holmes anda para baixo e para cima no campo em volta da casa — disse-nos. — E quer que subamos os quatro à casa.

— À casa do Sr. Cunningham?

— Exatamente.

— Para quê?

O inspetor encolheu os ombros.

— Não sei, senhor. Cá entre nós, penso que o Sr. Holmes ainda não se restabeleceu completamente. Tem-se conduzido de modo muito esquisito e está muito excitado.

— Acho que não precisa se alarmar — disse eu. — Geralmente, tenho verificado que há método em sua loucura.

— Aliás, pode haver quem diga que há loucura em seu método — murmurou o inspetor. — Mas ele está ansioso por prosseguir, coronel, de modo que o melhor é irmos, se estiverem prontos.

Encontramos Holmes andando de um lado para outro, com o queixo enterrado no peito e as mãos metidas nos bolsos das calças.

— O caso ganha em interesse — disse ele. — Watson, sua excursão ao interior foi um enorme êxito. Estamos tendo uma manhã encantadora.

— Ouvi dizer que o senhor já esteve no local do crime — falou o coronel.

— Sim. O inspetor e eu já fizemos um reconhecimento rápido, mas completo.

— Algum resultado?

— Ora, vimos coisas interessantes. Eu lhes direi o que fizemos enquanto caminhamos. Primeiro, vimos o corpo do pobre homem. Morreu certamente de um ferimento a bala, como dizem.

— Então o senhor tinha dúvidas?

— Oh, é bom comprovar tudo. Nossa inspeção não foi em vão. Entrevistamos o Sr. Cunningham e o filho, que mostraram o lugar exato onde o ladrão pulou a cerca do jardim na sua fuga. Era de grande interesse.

— Naturalmente.

— Em seguida, fomos ver a mãe do pobre rapaz. Por mais que nos esforçássemos, não pudemos obter nenhuma informação dela, porque é muito velha e fraca da cabeça.

— E qual o resultado de suas investigações? — perguntei.

— A convicção de que o crime é muito peculiar. Nossa visita talvez possa descobrir alguma coisa que o torne mais claro. Creio que estamos perfeitamente de acordo, inspetor, em que o fragmento de papel na mão do morto, indicando a hora exata de sua morte, é de extrema importância.

— Ele podia dar-nos uma pista, Sr. Holmes.

— Com efeito, ele a dá. Quem quer que tenha escrito a carta, foi o homem que tirou William Kirwan da cama àquela hora. Mas onde está o resto dessa folha de papel?

— Examinei o chão com todo o cuidado na esperança de encontrá-lo — disse o inspetor.

— Foi rasgada da mão do morto. Por que alguém haveria de desejá-la? Naturalmente, porque ela o incrimina. E o que faria com ela? Muito provavelmente a meteria no bolso, sem notar que um canto dela ficara nas mãos do cadáver. Se pudéssemos achar o resto da folha, é claro que teríamos progredido muito na solução do mistério.

— Exatamente! Mas como revistar o bolso do criminoso antes de prendê-lo?

— Bem, vale a pena pensar nisso. Há ainda outro ponto claro. A carta foi enviada a William. Quem a escreveu não podia levá-la; do contrário, transmitiria sua mensagem verbalmente. Quem levou-lhe a carta, então? Ou teria sido enviada pelo correio?

— Já investiguei — respondeu o inspetor. — William recebeu uma carta pelo correio ontem à tarde. O envelope foi destruído por ele.

— Excelente! — exclamou Holmes, dando umas palmadinhas nas costas do inspetor. — O senhor já falou com o carteiro. É um prazer trabalhar com o senhor. Bem, aqui está a casa; se o senhor quiser entrar, coronel, mostrar-lhe-ei o local do crime.

Passamos pela casinha onde morava o cocheiro, e subimos uma alameda ladeada de carvalhos até uma bonita casa do tempo da rainha Ana, que ostentava a data de Malplaquet sobre o dintel da porta. Holmes e o inspetor fizeram-nos contorná-la até chegarmos a um portão lateral, separado da cerca que ladeia a estrada por um trecho de jardim. Um policial estava de guarda à porta da cozinha.

— Abra a porta, oficial — disse Holmes. — Ora, foi nesta escada que o jovem Cunningham esteve, e viu os dois lutando justamente onde nós estamos. O velho Cunningham estava naquela janela… a segunda, à esquerda, e dali viu o indivíduo desaparecer à esquerda daquela moita. O filho, também. Ambos estão certos disso por causa da moita. Então o Sr. Alec saiu correndo e ajoelhou-se ao lado do ferido. O chão está muito duro, como vêem, e não há rastros para nos guiarem.

Enquanto falava, dois homens desceram a trilha do jardim, rodeando o canto da casa. Um era velho, de semblante grave, olhos fundos e tristes; o outro era um jovem impetuoso, cuja expressão, brilhante e sorridente, e a roupa esplêndida faziam um contraste estranho com o que nos trouxera ali.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Ainda continua com isso? — disse ele a Holmes.

— Pensei que os londrinos nunca falhassem. O senhor não me parece assim tão rápido.

— Ah, é preciso dar-nos um pouco mais de tempo — respondeu Holmes, bem-humorado.

— Como quiser — disse o jovem Cunningham. — Podemos ajudá-lo a recolher indícios?

— Há apenas um — respondeu o inspetor. — Pensávamos que podíamos descobrir… Céus! O que houve, Sr. Holmes?

O rosto de meu pobre amigo apresentou de repente a mais terrível expressão. Seus olhos viraram-se para cima, seu rosto contraiu-se numa agonia e, com um sufocado gemido, caiu com o rosto no chão. Horrorizados com a rapidez e a violência do ataque, levamo-lo para a cozinha, onde o deitamos sobre um banco e o abanamos por alguns minutos. Finalmente, desculpando-se de sua fraqueza e com expressão de vergonha, levantou-se outra vez.

— Watson pode dizer-lhes que acabo de me restabelecer de uma prolongada doença — explicou-lhes. — Estou sujeito a estes repentinos ataques de nervos.

— Mandarei alguém levá-lo a casa de carro — propôs o velho Cunningham.

— Ora, visto que estou aqui, quero ver uns pormenores que gostaria muito de elucidar. Podemos verificá-los muito facilmente.

— De que se trata?

— Ora, parece-me muito possível que a chegada desse pobre William não tenha se dado antes, mas depois de o ladrão entrar na casa. O senhor parece estar certo de que, embora a porta tivesse sido arrombada, o ladrão não chegou a entrar na casa.

— Penso que é muito claro — disse o st. Cunningham com gravidade, — Visto que meu filho Alec ainda não fora deitar-se, certamente teria ouvido alguém a andar por aí.

— Onde ele estava sentado?

— Eu estava fumando em meu quarto de vestir.

— Em que janela?

— A última à esquerda, perto da de meu pai.

— Nesse caso, ambas as velas estavam acesas?

— Sem dúvida alguma.

— Há aqui pontos muito curiosos — disse Holmes, sorrindo. — Não é extraordinário que um ladrão… e um ladrão que já tenha experiência, entrasse deliberadamente numa casa no momento em que podia ver pela luz acesa que dois membros da família ainda estavam acordados?

— Ele deve ter agido com audácia e sangue-frio.

— Claro; se o caso não fosse esquisito, não lhe teríamos pedido auxílio — disse o Sr. Alec. — Mas, quanto à sua idéia de que o homem teria roubado a casa antes de William atacá-lo, julgo-a absurda. Não teríamos encontrado o local desarrumado e dado pela falta dos objetos que ele levasse?

— Depende — respondeu Holmes. — O senhor deve lembrar-se de que estamos lidando com um ladrão muito especial, que parece ter linhas próprias de ação. Olhe, por exemplo, para a porção de coisas esquisitas que levou da casa de Acton: o que eram? Uma bola de barbante, um peso de papéis e não sei que outras bugigangas!

— Bem, estamos inteiramente em suas mãos, Sr. Holmes — disse o velho Cunningham. — Tudo o que o senhor ou o inspetor sugerirem será feito imediatamente.

— Em primeiro lugar — disse Holmes —, gostaria que o senhor oferecesse uma recompensa… como iniciativa sua, para que os funcionários não percam muito tempo discutindo a respectiva quantia, pois essas coisas não se fazem correndo. Já rascunhei aqui a fórmula, se o senhor não vir inconveniente em assiná-la. Cinqüenta libras são suficientes, penso eu.

— Eu daria de boa vontade cem libras — respondeu o juiz de paz, pegando na tira de papel e no lápis que Holmes lhe oferecia.

— Mas isso não está certo — disse ele, olhando para o documento.

— Escrevi-o muito às pressas.

— Como vê, o senhor começa assim: “Devia faltar um quarto para a uma hora, na manhã de terça-feira, quando foi feita uma tentativa…”, e assim por diante. Na realidade, era um quarto para a meia-noite.

Fiquei angustiado com o engano, porque sabia como Holmes havia de sentir um deslize dessa natureza. A exatidão nos fatos era sua especialidade. Mas sua recente doença abalara-o, e o incidente, embora insignificante, me mostrou que ele ainda estava longe de ser o mesmo. Ficou claramente embaraçado por um instante. O inspetor arregalou os olhos, e Alec Cunningham soltou uma gargalhada. O velho Cunningham corrigiu o engano e devolveu o papel a Holmes.

— Mande publicá-lo o mais depressa possível — disse ele.

Holmes pôs cuidadosamente a tira de papel em sua carteira.

— E agora — continuou —, seria realmente bom que percorrêssemos todos juntos a casa para verificar se este excêntrico ladrão não levou nada com ele.

Antes de entrar, Holmes examinou a porta que fora forçada. Era evidente que fora introduzido um formão ou canivete na fechadura, forçando-a para trás. Vimos as marcas na madeira, no lugar onde fora empurrada.

— O senhor não usa trancas?

— Nunca as julgamos necessárias.

— Não tem cão?

— Temos. Mas está preso do outro lado da casa.

— A que horas se deitam seus criados?

— Cerca das dez horas.

— Seria portanto natural que a essa hora William estivesse também na cama?

— Perfeitamente.

— É curioso que na noite do crime estivesse acordado. Ora, ficarei muito contente se o senhor quiser ter a bondade de nos mostrar toda a casa, Sr. Cunningham.

Um corredor de laje, com uma cozinha ao fundo, dava, por uma escada de madeira, diretamente para o primeiro andar, e terminava num terraço fronteiriço; depois, havia uma segunda escada, mais ornamentada, que levava para o pórtico da fachada. Daí entrava-se na sala de estar e em diversos quartos, incluindo o do Sr. Cunningham e o do filho.

Holmes andava devagar, anotando com cuidado a planta da casa. Eu podia adivinhar pela sua expressão que estava na pista certa, mas não podia imaginar, nem de longe, em que direção as suas deduções o levavam.

— Meu caro senhor — disse o Sr. Cunningham —, isso é sem dúvida alguma desnecessário. Aquele ao fundo da escada é meu quarto, o do meu filho fica do outro lado. Deixo a seu critério se seria possível ao ladrão subir até aqui sem nos perturbar.

— O senhor deve dar meia-volta e tentar descobrir uma pista fresca, creio eu — disse o filho com um sorriso malicioso.

— Paciência; preciso pedir-lhes que tenham um pouco mais de paciência comigo. Gostaria, por exemplo, de ver a que distância do chão ficam as janelas da frente. Este, suponho, é o quarto de seu filho — e empurrou a porta —, e este outro, presumo, é o quarto de vestir onde Alec Cunningham estava fumando quando foi dado o alarme. Para onde dá a janela daquele? — Dirigiu-se para o quarto, abriu a porta e olhou em volta.

— Suponho que agora já esteja satisfeito — falou o Sr. Cunningham de mau humor.

— Muito obrigado; creio que já vi tudo o que queria.

— Então, se for realmente necessário, podemos entrar em meu quarto.

— Se não for pedir demais.

O juiz de paz encolheu os ombros e abriu caminho para seu próprio quarto, que era comum e mobiliado com simplicidade. Caminhando na direção da janela, Holmes atrasou-se tanto que eu e ele éramos os últimos do grupo. Perto da cama havia uma mesa quadrada sobre a qual estavam uma fruteira com laranjas e uma garrafa de água. Ao passar por ela, para meu enorme espanto, curvou-se à minha frente e esbarrou nela, derrubando-a com tudo o que estava em cima.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

O que era de vidro fez-se em mil pedaços, e as frutas rolaram pêlos quatro cantos do quarto.

— Que lindo serviço, Watson! — disse ele friamente.

— Veja a porcaria que fez no tapete.

Baixei-me confuso para apanhar as frutas, compreendendo que devia haver um motivo para que meu companheiro quisesse que eu arcasse com a culpa. Os outros ajudaram-me, e a mesa foi posta de pé novamente.

— Oh! — exclamou o inspetor. — Aonde foi ele? Holmes desaparecera.

— Esperem um instante — disse o jovem Cunningham. — O homem não regula bem da cabeça, parece-me. Venha, pai, vamos ver para onde foi.

Saíram do quarto, deixando o inspetor, o coronel e eu a olharmos uns para os outros.

— Palavra que estou quase concordando com o Sr. Alec — disse o oficial. — Pode ser o efeito da doença, mas parece-me que…

Suas palavras foram cortadas por um grito repentino de alarme. “Socorro! Socorro! Assassino!” Com um estremecimento, reconheci a voz de meu amigo. Saí como louco do quarto para o patamar. Os gritos, que se transformavam num rouco e inarticulado berreiro, vinham do quarto que visitáramos primeiro. Precipitei-me para lá, e depois para o quarto de vestir.

Ambos os Cunninghams estavam curvados sobre a figura prostrada de Sherlock Holmes; o mais jovem apertava-lhe a garganta com ambas as mãos, e o mais velho pareceu-me estar torcendo seu pulso. Num instante os separamos, e Holmes cambaleou para ficar de pé, muito pálido, evidentemente exausto.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Prenda estes homens, inspetor! — arfou ele.

— Sob que acusação?

— A do assassínio do cocheiro William Kirwan!

O inspetor olhou-o, muito confuso.

— Oh, Sr. Holmes, ora vamos — disse ele —, estou certo de que o senhor não quer dizer que…

— Basta, homem, olhe para a cara deles! — gritou Holmes secamente.

Era verdade; jamais vi uma confissão de culpa mais completa em rosto humano. O velho parecia entorpecido e pasmado, com uma expressão grave e sombria que lhe marcava fortemente o rosto. O filho, por outro lado, perdera toda a altivez, a maneira impetuosa que o caracterizava, e a ferocidade de um animal selvagem brilhava em seus olhos escuros, deformando-lhe as feições correias. O inspetor nada mais disse.

Dirigiu-se para a porta e soprou seu apito. Dentro de poucos instantes, dois guardas apareceram.

— Não tenho outra alternativa, Sr. Cunningham — disse ele. — Espero que tudo isto venha a ser um absurdo engano; mas pode ver que… Quer fazer o favor? Solte-o!

— Bateu com a mão, e um revólver, cujo gatilho o mais jovem tentava nesse momento premir, retiniu no soalho.

— Guarde-o — disse Holmes, pondo-lhe rapidamente o pé em cima. — Vai ver que lhe será muito útil no tribunal. Mas era isto o que realmente queríamos. — E sacou um pequeno pedaço de papel amarrotado.

— O resto da folha? — gritou o inspetor.

— Exatamente.

— E onde estava?

— Onde eu estava certo de que devia estar. Esclarecer-lhe-ei agora mesmo todo o assunto. Creio, coronel, que o senhor e Watson podem ir-se agora. Estarei com vocês dentro de uma hora no máximo. O inspetor e eu precisamos trocar uma palavra com os prisioneiros. Mas estarei de volta para o almoço.

Sherlock Holmes cumpriu sua palavra, pois cerca de uma hora depois estava conosco na sala de fumar do coronel. Estava acompanhado por um cavalheiro baixo e de certa idade, que foi apresentado como o Sr. Acton, cuja casa fora objeto do primeiro furto.

— Eu queria que o Sr. Acton estivesse presente enquanto eu lhes explico este caso — disse Holmes —, porque é natural que ele tenha o mais vivo interesse pêlos pormenores. Receio, meu caro coronel, que lamente a hora em que deixou entrar em sua casa um pássaro de tormenta como eu.

— Pelo contrário — respondeu o coronel calorosamente —, considero que o maior privilégio foi ter-me sido permitido observar seus métodos de atuação. Confesso que eles excederam minhas expectativas, e que sou inteiramente incapaz de explicar seu resultado. Não vi ainda o menor vestígio de um indício.

— Temo que minha explicação possa desiludi-lo, mas sempre tive o hábito de não ocultar nenhum de meus métodos, quer a meu amigo Watson, quer a qualquer outro que por eles mostre um interesse inteligente. Mas antes, como estou muito abalado pelo ataque no quarto de vestir, creio que me faria bem um trago de seu licor, coronel. Minhas forças foram submetidas a uma dura prova ultimamente.

— Espero que não tenha mais daqueles ataques de nervos.

Sherlock Holmes riu cordialmente.

— Chegaremos a isso na devida hora — disse ele. — Eu lhes farei a narrativa dos acontecimentos na ordem certa, mostrando-lhes os vários pontos que me guiaram em minha decisão. Interrompam-me, por favor, se houver qualquer explicação que não seja perfeitamente clara.

“É da mais alta importância, na arte da dedução, distinguir em determinados fatos os que são incidentais e os que são fundamentais. De outra forma, a energia e a concentração se dissiparão, em vez de se concentrarem. Ora, neste caso, não tive, desde o princípio, a mais leve dúvida de que a chave de todo o problema tinha de ser procurada no pedaço de papel que o morto tinha na mão.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

“Antes de entrar nisso, quero chamar sua atenção para o fato de que, se a narrativa de Alec Cunningham fosse verdadeira, e se o assaltante, depois de atirar em William Kirwan, tivesse fugido instantaneamente, então é claro que não podia ser ele quem arrancara o papel da mão do morto. Mas, se não fora ele, devia ter sido o próprio Alec Cunningham, porque, quando o velho desceu, vários criados já estavam no local. O pormenor é simples, mas o inspetor desprezara-o, porque tinha partido da hipótese de que aqueles magnatas do condado nada tinham a ver com a coisa. Ora, faço questão de nunca ter qualquer preconceito e de seguir docilmente qualquer fato que me oriente, e assim, na primeira fase da investigação, considerei com um pouco de desconfiança a parte que fora representada pelo Sr. Alec Cunningham.

“Fiz então um exame cuidadoso no pedaço de papel que o inspetor nos tinha mostrado. Logo me pareceu que ele formava parte de um documento muito importante. Aqui está ele. Não notam qualquer coisa muito sugestiva a seu respeito?”

— Tem um aspecto muito irregular — observou o coronel.

— Meu caro senhor — exclamou Holmes —, não pode restar a menor dúvida de que foi escrito por duas pessoas formando palavras alternadas. Se lhe chamar a atenção para os tt fortes de “quarto” e meia-noite”, e lhe pedir para compará-los com o de “quanta”, reconhecerá imediatamente esse fato. Uma breve análise dessas quatro palavras o habilitaria a dizer com a máxima confiança que o “verá” e o “pode ser” também são escritos com mão forte, e o “quanta”, com mão mais fraca.

— Por Júpiter! É claro como o dia — gritou o coronel. — Por que razão esses dois homens haviam de escrever uma carta desse modo tão estranho?

— É evidente que o negócio era sujo, e um dos homens, que desconfiava do outro, estava resolvido, acontecesse o que acontecesse, a que cada um devia ter nele parte igual. Ora, está claro que aquele dos dois homens que escreveu “quarto” e “meia-noite” era o cabeça.

— Como chega a essa conclusão?

— Poderíamos deduzir isso simplesmente pelas características da letra, comparada com a outra. Mas temos razões mais seguras do que essa. Se examinar este pedaço de papel com atenção, chegará à conclusão de que o homem de mão forte escreveu primeiro todas as suas palavras, deixando os espaços para o outro preencher. Esses espaços nem sempre foram suficientes, e o senhor pode ver que o segundo homem teve pouco espaço para colocar o seu “para a” entre “quarto” e “meia-noite”, o que mostra que essas palavras já estavam escritas. O que escreveu todas as palavras primeiro é sem dúvida alguma o que planejou este negócio.

— Excelente! — gritou o Sr. Acton.

Sidney Paget, 1893

Sidney Paget, 1893

— Mas muito superficial — respondeu Holmes. — Entretanto, chegamos agora ao ponto mais importante. Os senhores talvez não saibam que o cálculo da idade de um homem pela sua caligrafia tem sido levado a considerável exatidão pêlos peritos. Em casos normais, pode-se colocar um homem em sua verdadeira década com suficiente segurança. Digo em casos normais, porque o mau estado de saúde e a fraqueza física apresentam sinais de velhice, mesmo quando o inválido é jovem. Nesse caso, olhando-se para a mão forte e ousada de um e para a aparência muito arqueada da do outro, mas que ainda conservava sua legibilidade, embora os tt tenham começado a perder os cortes, podemos dizer que um era jovem e outro, avançado em anos, sem ser positivamente decrépito.

— Excelente — exclamou o Sr. Acton outra vez.

— Há ainda um ponto, entretanto, que é mais sutil e de maior interesse. Há qualquer coisa em comum nessas duas caligrafias. Elas pertencem a homens que são parentes. Ao senhor pode parecer muito claro nos ss, mas para mim há pontos muito menores que indicam a mesma coisa. Não tenho a menor dúvida de que um maneirismo de família pode ser identificado nesses dois espécimes de caligrafia. É claro que estou dando agora apenas os resultados principais de meu exame do papel. Há vinte e três outras deduções que seriam de mais interesse para os peritos do que para os senhores. Tudo tendia a enraizar em mim a impressão de que os Cunninghams, pai e filho, escreveram o bilhete. Depois de ir tão longe, eu devia, sem dúvida, entrar nos pormenores do crime e ver até onde poderiam auxiliar-nos. Fui à casa com o inspetor e vi tudo o que se devia ver. O ferimento do morto era, como pude determinar com absoluta segurança, causado por uma bala de revólver atirada a uma distância de menos de quatro metros… Não havia enegrecimento de pólvora na roupa. Claro que Alec Cunningham mentira quando dissera que os dois homens estavam lutando quando soou o tiro. Além disso, pai e filho concordam quanto ao local na estrada onde o homem desapareceu. Acontece, porém, que nesse ponto há uma fossa larga, com lama no fundo. Como não houve indícios de pegadas de botas ao redor dessa fossa, não só fiquei absolutamente certo de que os Cunninghams mentiam outra vez, como ainda de que, de fato, nunca houve esse homem desconhecido em cena.

“Então, tinha de imaginar o motivo daquele crime singular. Para chegar a ele, tive de me esforçar primeiro para descobrir a razão do primeiro furto em casa do Sr. Acton. Soube, devido a alguma coisa que o coronel nos contou, que há uma ação judiciária em andamento entre o senhor, Sr. Acton, e os Cunninghams. É claro que logo me ocorreu que eles tinham assaltado sua biblioteca com a intenção de se apossarem de algum documento que podia ser de muita importância no caso.”

— Exatamente — disse o Sr. Acton. — Não pode haver a menor dúvida possível quanto às suas intenções. Tenho o mais legítimo direito a metade de suas propriedades atuais, e se pudessem descobrir certo papel, que felizmente estava no cofre de meus advogados, teriam invalidado com certeza nossa ação.

— Aí está — disse Holmes, sorrindo. — Foi uma tentativa perigosa e temerária, na qual procurei descobrir a influência do jovem Alec. Não tendo descoberto nada, tentaram desviar as suspeitas fazendo com que parecesse um furto comum, e para isso levaram tudo aquilo em que puderam deitar a mão.

“Tudo isso está bastante claro, mas havia muita coisa que continuava obscura. O que eu queria, acima de tudo, era conseguir a parte da folha que faltava. Eu estava certo de que Alec a arrancara da mão do morto, e quase certo de que ele a devia ter colocado no bolso do roupão. Em que outro lugar poderia tê-la colocado? A única questão era saber se ainda estaria lá. Valia um esforço investigá-lo. E para esse fim fomos todos à casa.

“Os Cunninghams juntaram-se a nós, como sem dúvida se lembram, do lado de fora da porta da cozinha. Era, portanto, da máxima importância que não se lembrassem da existência desse papel, pois logo o destruiriam. O inspetor estava para lhes revelar nosso interesse quando, pela casualidade mais feliz do mundo, sofri uma espécie de ataque, e assim se desviou a conversa.”

— Valha-me Deus! — exclamou o coronel, sorrindo. — O senhor quer dizer que toda a nossa simpatia foi desperdiçada, e seu ataque era uma impostura!

— Falando como profissional, foi admiravelmente realizado — disse eu, olhando com espanto para aquele homem que sempre me confundia com alguma nova faceta da sua astúcia.

— É uma arte muitas vezes útil — disse ele. — Quando me restabeleci, elaborei um plano que talvez tivesse um pouco de ingenuidade, para levar o velho Cunningham a escrever a palavra “meia-noite” a fim de compará-la com a “meia-noite” do papel.

— Oh! Que tolo fui eu! — exclamei.

— Eu notei que você estava com pena de minha fraqueza — disse Holmes com uma risada. — Fiquei triste por causar essa simpática dor que eu sei que sentia. Então, subimos juntos a escada e, entrando no quarto e vendo o roupão pendurado atrás da porta, pensei em fazer cair a mesa para prender a atenção deles por alguns momentos, enquanto me esgueirava para lhe revistar os bolsos. Entretanto, mal eu tinha conseguido o papel, que estava num dos bolsos, como esperava, quando os Cunninghams caíram sobre mim, e creio verdadeiramente que me teriam assassinado ali, não fora o auxílio pronto e amigo dos senhores. Por assim dizer, ainda sinto a pressão dos dedos do jovem ao redor de minha garganta, e o pai torcendo-me o pulso na ânsia de me arrancar o papel da mão. Viram que eu devia saber tudo a respeito do caso e, como compreendem, a mudança repentina da segurança absoluta para um completo desalento tornou-os inteiramente desesperados.

“Depois, falamos um pouco com o velho Cunningham sobre o motivo do crime. Estava bastante tratável. Mas seu filho parecia um perfeito demónio, pronto a fazer saltar seus próprios miolos ou os de qualquer outro se pudesse agarrar um revólver. Quando Cunningham viu que a acusação contra ele era muito grave, perdeu todo o ânimo e fez uma confissão completa de tudo. Parece que William seguiu os dois amos secretamente, na noite em que fizeram o assalto à casa do sr. Acton, e, tendo-os assim em seu poder, ameaçava revelar tudo para explorá-los. Todavia, o Sr. Alec era um homem muito perigoso para um jogo daquela espécie. Foi uma façanha de gênio de sua parte ver no sobressalto do ladrão, que convulsionou toda a região, uma oportunidade para se livrar airosamente do homem que temia. William foi traído e alvejado; e, caso eles se tivessem apossado da carta toda e dessem um pouco mais de atenção aos pormenores, é bem possível que a suspeita nunca se levantasse.

— E a carta?

Sherlock Holmes juntou os dois papéis diante de nós.

Ilustração original da edição brasileira

Ilustração original da edição brasileira

— É exatamente a espécie de coisa que eu esperava — disse-nos. — Certamente, não podemos saber ainda que relações pode ter havido entre Alec Cunningham, William Kirwan e essa Annie Morrison. O resultado, de qualquer modo, mostra que a ratoeira foi habilmente armada. Estou certo de que os senhores não podem deixar de se deleitar com os traços de hereditariedade mostrados no p e no g. A ausência dos pingos nos ii, na letra do velho, também é característica. Watson, creio que nosso tranqüilo descanso no campo foi um verdadeiro triunfo, e certamente voltarei muito mais revigorado à Baker Street amanhã.

1894
Memórias de Sherlock Holmes

1. Estrela de Prata § 2. A caixa de papelão
3. A face amarela § 4. O escriturário da corretagem
5. A tragédia do “Gloria Scott” § 6. O ritual Musgrave
7. O enigma de Reigate § 8. O corcunda
9. O paciente internado § 10. O intérprete grego
11. O tratado naval § 12. O problema final

Ilustrações: Sidney Paget, cortesia Camden House
Transcrição: Mundo Sherlock